quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O gato que comia pimenta


Naquela manhã ensolarada, fim do verão, ou melhor, início do outono, dois seres caminhavam placidamente pelo centro velho de Florianópolis.

Um homem, na casa dos cinqüenta anos.

Com ele, seu cachorro, porte médio, pelo comprido, amarelado e cara de satisfeito com a vida.

Cara de cachorro, enfim.

Ambos iam lado a lado, e o homem conversava com seu cachorro que, obviamente, nada respondia.

Curiosamente, à simples menção das palavras “cerveja” e “Portuga”, o cachorro ficou visivelmente alterado.

Ficou mais alegre, mais elétrico.

Dirigiram-se para um boteco, daquele estilo “risca-faca”, azulejado até metade das paredes, prateleiras cheias de bebidas de caráter e qualidade discutíveis, balcão de fórmica alaranjada, mas já meio rosada pela idade, um boteco bem boteco.

Atrás do balcão, um senhor de idade, toalhinha imunda no ombro, bigodão, cara de português de piada.

Mas de português só tinha o apelido, pois era bem manezinho, bem florianopolitano.

Jamais havia saído da ilha, conhecia Portugal apenas por livros, e olhe lá.

Em tempos idos, havia sido professor, agora se dedicava ao bar, de sua propriedade.

A estranha dupla, ao se aproximar, provocou um baita sorriso no rosto do botequeiro.

Tanto o homem, quanto seu cachorro, também sorriram.

Ou assim pareceu ao Portuga, pois ele sempre desconfiou que aquele cachorro também, e de forma muito humana, sabia sorrir.

Antes mesmo da dupla chegar ao bar, já havia uma garrafa de cerveja, geladíssima, um copo e uma tigela em cima do balcão, à espera deles.

Sim, uma tigela, pois que o cachorro também tomava lá seus goles da loira gelada.

- Ora, ora, se não é Gato e seu Rattisbones de estimação! – disse Portuga, com cara de deboche.

- Correção, ó Portuga: é Rattis e seu cachorro de estimação, Mr. Gato. Tás engraçadinho hoje, hein? Dormiu com o Bozo, foi?

- Hahahaha! – gargalhou o Portuga, visivelmente de bom humor.

E perguntou:

- Mas o que fazem acordados a esta hora sombria da madrugada?

- Madrugada? Hora sombria? Tá doido, ó Portuga?

- Não, mas nunca te vi tão cedo na rua.

- Como cedo? São mais de dez horas da manhã!

- Então?

- Vai procurar o caminhão de onde tu caiu, ó gajo!

- E como vai meu amigo Gato, não tens incomodado ele muito, né?

- Esse aí não se incomoda com nada, é um boa vida.

Gato, esse era o nome do cachorro, olhava para ambos com cara de quem estava entendo tudo, embora seu maior interesse fosse na tigela, espantosamente já vazia.

- Por falar em Gato, outro dia ouvi uma história espantosa, disse Rattis.

- Que história?

- Sobre um maluco, um italiano, que fazia com que seu gato, gato mesmo, dos que fazem miau, comesse pimenta.

- Oió! Gato não come pimenta, isso é invenção!

- Também achei, mas ele me contou como era o truque, aliás, maldade.

- No mínimo devia encher o animal de porrada, ou deixá-lo à míngua por uma semana.

- Não, nada disso. Era pior.

- Pior? Mas me conte, agora fiquei curioso.

- Tá, mas antes traga outra gelada, e gelada, desta vez. Tu tá perdendo o dom, Portuga!

- Gato não concorda contigo, e ademais, me importa é a opinião dele.

- Então espere ele opinar, mas espere sentado, de preferência...

Após o botequeiro servir mais uma cerveja, esta quase congelando, assim como despejar uma generosa porção na tigela do cachorro, aboletou-se numa banqueta para ouvir mais uma história bizarra, dentre tantas que seu amigo lhe contava.

- Era assim: o cara disse que seu gato comia pimenta.

- Duvidei.

- Ele confirmou categórico.

- Tá, mas como tu fazes isso? Afinal, gatos não comem pimenta.

- Mas eu faço o meu comer. E come tudo, sem miar.

- Sei, tu enche ele de porrada, é isso?

- Não, não, nada de porrada. Ele come de espontânea vontade.

- Conta outra!

- Aliás, vamos fazer uma aposta sobre isso?

- Valendo o que?

- Um pote de pimenta, a mesma que meu gato come.

- Ok, apostado. Agora prove!

- Peraí que vou pegar o gato.

- Pouco tempo depois, surge o cara com um gato no colo.

Senta-se, abre um vidro de pimenta vermelha, daquelas de fazer chorar, só com o cheiro.

- Pega uma colher, de sopa, enche completamente.

- De repente, segura o infeliz animal pelo rabo e passa a colher no cu dele.

- Solta o pobre do gato, que imediatamente, sentindo a queimação e, como todo gato que se preze faz para se limpar, começa a lamber a pimenta.

- Lambe que lambe até que, por fim, acaba comendo toda a pimenta.

- Viu só? Ganhei a aposta, pode pagar em cerveja mesmo. Pimenta eu tenho aos montes.

- Orra meu! Que puta sacanagem isso, hein? – Disse eu.

- Ele comeu, não comeu? Ganhei a aposta, pode ir pagando!

- É, comeu... Qualquer dia esse gato vai te matar, enquanto tu dormes.

- Vai nada, acho até que ele gosta, olha só a cara dele.

Já a cara de Portuga era entre o espantado e o horrorizado.

Jamais havia ouvido falar em semelhante crueldade.

- Isto só pode ser mentira! – Disse Portuga, horrorizado.

- Nem é, eu vi.

- Puta merda! Que filho-da-puta esse aí!

- Concordo, mas tive que pagar a aposta pro Andrea.

- Andrea? Mas não era um amigo? É veado o seu amigo?

- Ô seu português! Andrea é nome masculino lá na terra deles, o cara é italiano!

- Ah tá, entendi... Andrea de que?

- Cavallieri, Camilleri, algo assim. Mas pra que tu queres saber o nome dele?

- Porque se um dia ele vier aqui, quem vai sair com um pote de pimenta enfiado no rabo será ele, isso eu prometo!

- Hahahahaha! Essa eu queria ver!

Mas quem já não estava vendo mais nada era Gato, o cachorro. Após mamar quatro tigelas de cerveja, já estava balançando na banqueta, visivelmente embriagado.

- Aí, ó Portuga, embebedastes meu cachorro!

- Não fiz nada, ele bebeu porque quis! – Defendeu-se o outro.

- Tá, põe na conta, vou levar este infeliz pra casa, mas antes terei que passar numa farmácia e comprar um engov pra ele.

- Tá bom... Mas veja se paga, hein? Tu já tá devendo mais de uma caixa aqui!

- Devo não nego, jamais pagarei!

- Óió! Veja bem!

E lá se foram ambos, o cachorro trocando as pernas, todas as quatro e o homem ao lado, rindo da situação do pobre do bicho.

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