sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O estranho caso do homem despirocado

Como todos os dias, fui trabalhar, após providenciar a comida e a água de Gato.

Nesta época, trabalhava com reposição de mercadorias em prateleiras de supermercados e lojas de departamentos.

Para uma grande empresa de cosméticos.

Ao chegar ao primeiro mercado de meu roteiro, uma surpresa.

Polícia na porta.

Todos os funcionários do lado de fora, nervosos, falando uns com os outros.

O que será que teria acontecido, logo àquela hora da manhã.

Não era nem dez da manhã.

Fui me aproximando, cheguei perto de uma moreninha, uma gordinha linda. Moreninha é modo de dizer, pois ela era bem branquinha, só os cabelos muito pretos.

E, na seção em que eu trabalhava, com perfumaria, era a única que não era baixinha.

E as demais, todas de baixa estatura.

Não sei dizer o porquê disso, mas em qualquer loja, sempre são as mais baixinhas que cuidam deste setor.

Deve ser alguma regra.

Perguntei:

- Oi, bom dia! O que acontece?

- Bom dia, Sr.Rattisbonnes. Tem um doido aí dentro.

- Um doido? Como assim, um doido?

- Um cara entrou logo que abriu a loja, já foi gritando que tinham sacaneado com ele, que ele iria se vingar.

- Sacaneado? Quem? A loja?

- Não, aliás, não sei. Mas me pareceu que ele sofreu um acidente e resolveu descontar no primeiro lugar que achou, ou seja, aqui.

- Mas o acidente foi aqui na loja?

- Não, não, nada a ver. Foi na rua mesmo.

- Que sujeito doido!

- Pois é, Sr. Rattisbonnes, pois é.

Curioso que estava, fui me aproximando, para ver se descobria mais alguma coisa.

Era uma quebra na minha rotina, e era muito bem vinda.

Perguntei ao policial mais próximo do que se tratava.

Ele me olhou desconfiado, perguntou se eu trabalhava ali.

Respondi que sim, que era promotor.

Ele relaxou um pouco, me olhou de novo, e disse que um cara havia sido atropelado. No acidente, tinha perdido uma parte do corpo, que tinha sido amputada. Ao que a polícia tinha conseguido apurar, na véspera ele havia entrado naquela loja para comprar algo, e esquecera um vidro com o membro amputado numa prateleira. A faxineira havia achado e, enojada, jogou fora o tal do vidro.

E agora o homem estava lá, possesso.

E armado.

Gritando, exigindo que lhe devolvessem a porcaria do vidro.

Perguntei, mais curioso ainda:

- Mas o que diabos continha o vidro?

- O pau dele!

- Caralho!

- É, foi isso mesmo que eu disse!

Devo ter feito uma cara bem estranha, pois o guarda não conseguiu reprimir uma risada.

Inacreditável, parecia até ficção, conto do Carlos Heitor Cony.

Acho até que ele já havia escrito algo assim, um livro, se não me engano.

Era a vida imitando a arte.

Que supimpa!

Quando eu contasse isso ao Portuga, ele iria desacreditar.

Afastei-me um pouco, e fiquei pensando no infeliz do lixeiro que encontrasse tão inusitada peça.

Parei novamente ao lado da gordinha, que estava visivelmente feliz por esta repentina interrupção no seu trabalho.

Era uma folga, para ela, e para mim.

Infelizmente, ela deveria ser uns vinte anos mais nova de que eu.

Mas era bem bonita.

Curioso como a maioria das meninas gordinhas tem o rosto lindo, apesar do formato de barril.

Deve ser alguma compensação de Deus.

Justiça poética, ou algo assim.

De repente, comoção geral.

A polícia pelo visto se enchera e resolvera invadir o prédio.

Iam tirar o doido lá de dentro, à força, armado ou não.

Ele que fosse reclamar da vida e procurar o cacete dele em outro lugar.

Berreiro generalizado, ordens gritadas, confusão total.

Os funcionários, excitados, gritavam junto.

- Pega! Pega !

- Mata!

- Lincha!

- Capa, capa este filho da puta!

Como capa?

O infeliz já tinha sido castrado.

Povinho ruim, o que torna as pessoas assim?

Afinal, o pobre diabo não havia feito mal a ninguém, apenas queria que lhe devolvessem o que era dele por direito.

No final, descobriu-se que a arma era de brinquedo, de plástico.

O pobre do homem chorava, pedindo seu pau de volta.

Não era justo, dizia ele.

Concordo.

Já não bastava ter perdido o membro num acidente besta, ainda jogavam fora, no lixo?

Provavelmente algum cachorro ou gato de rua já teria devorado a salsicha dele.

Ou até um mendigo.

E lá foi ele, algemado, como se fosse um perigoso meliante, jogado violentamente dentro de um camburão, sob aplausos e vaias da platéia.

Findo o show, a rotina se instalou novamente.

Fiz meu serviço e, ao sair, dei mais uma olhada na gordinha.

Linda, muito lindinha ela.

Só faltava mais uma loja, eram duas por dia.

Depois, era pegar Gato e ir para o Bar do Portuga.

Fim de tarde.

Lá estávamos eu e Gato, no Portuga.

Como sempre.

E o Portuga, embora tivesse visto no noticiário do almoço a confusão na loja, nem imaginava a razão do alvoroço.

E também não queria acreditar na história que eu lhe estava contando.

- Não é possível!

- To dizendo, rapaz!

- Como um sujeito perde a piroca num acidente e sai com ela num vidro?

- Sei lá, deve ser difícil se separar disso.

- Mas num vidro? De conserva? Como se fosse um pepino em conserva?

- E eu sei? Não vi o vidro. Aliás, acho que ninguém viu, só a faxineira que jogou fora.

- Se é que ela jogou fora mesmo.

- Como assim, Portuga?

- Vai ver, levou pra casa dela.

- E pra que ela iria querer uma piroca em conserva?

- Pra olhar, botar de enfeite, sei lá.

- Tu tá fora da casinha, Portuga.

- Mas como este infeliz perdeu o pau?

- Pelo que soube, ele foi atropelado por um ônibus. Quando acordou no hospital, o pau estava lá, já num vidro, olhando solitário para ele.

- Puta merda, que maus hein?

- Pode crer!

- Que tal um pepino azedo pra acompanhar a cervejinha de hoje?

- Sai pra lá, Portuga, o que é isso? Nada de pepino ou salsicha, só amendoim.

E o Portuga ria que se acabava, com minha cara de nojo.

Já Gato iria adorar uma salsicha, fosse ela de porco ou de acidentado.

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