Um cachorro amarelo, porte médio, sem raça definida, mas com pedigree! Moro com meu humano de estimação, C. Rattisbones, um cara simpático e, pra um ser humano, boa gente. Tenho paixão por me debruçar em janelas, espiando a correria do dia-a-dia.
Escrevo algumas histórias, contando sobra as aventuras de
C. Rattisbones e seus amigos.
Então, boa leitura a todos, espero que se divirtam lendo-as, tento quanto eu me diverti escrevendo e vivenciando-as.
Uma boa cheirada a todos, sejam bem vindos!
Estávamos eu, Gato, Marília e Shanty, sentados à uma mesa de bar, no centro da cidade.
No meio da conversa, o celular de Shanty tocou.
Ele olhou o número e ignorou.
E tocou novamente.
E ele nada de atender.
Na terceira vez que estrilou, resolvi perguntar, já de saco cheio daquele barulho:
- Porra Shanty! Vai ou não vai atender esta porcaria?
- É uma guria com quem não quero mais nada, ela é doida, tá me aporrinhando a vida.
- Então desliga esta josta!
- Não posso, tô esperando outra ligação.
- Então atende, fala que tu tá numa festa gay, que assumiu e deixa o resto comigo!
E ele atendeu.
E falou, com uma voz de falsete:
- Áloouul! Ah, és tu? Seguinte, tô numa festa gay, pois resolvi assumir meu lado borboleta, querilda!
Nisso eu comecei a falar, também forçando a voz, no estereótipo perfeito da bicha alegre, bem perto do telefone dele, para que seu interlocutor ouvisse minhas palavras:
- Oool menina! Não cuidou do que era teu, perdeu! Bofe! Agora ele é meu, só meu, viu? Que moleque gostouso! Uu-ííííí!
Gato me olhou com uma cara de espanto, jamais havia me ouvido falar daquela forma.
Marília estava entre a gargalhada e o chocada.
E Shanty teve que segurar uma risada.
Antes de desligar o parelho, ele me disse, de canto:
- Ela pediu pra essa bicha louca do meu lado não falar isso, tá quase chorando...!
Eu aproveitei e arrematei mais alto e mais veado ainda:
- Uuuiii, larga este celulósico, benhê! Vem me dá um beijinho, pare de falar com esta bruaca, ela não te merece. Já disse, tu és só meu agora!
Ele desligou o celular e caiu na gargalhada.
- Porra Rattis, ela caiu direitinho, já tava quase chorando.
- É, acho que exagerei.
- Que nada, Rattis, ela merece, assim para de me torrar o saco. Valeu mesmo, Rattis!
E riu novamente, bem contente.
Confesso que eu até fiquei com pena da guria, nem sabia quem era.
Marília me olhava, Gato também.
Ambos com uma cara esquisita.
Acho que Marília estava em dúvida sobre minha sexualidade, e Gato, bem, Gato não dava pra saber o que ele estava pensando.
Mas pela cara boa coisa não era.
- Calma gente, não sou veado não. – Afirmei, com minha melhor voz de macho.
Shanty ria que se acabava:
- Rárárárá! Tu devias ser ator, Rattis, foi perfeito. Ou ator ou veado! Rárárárá!
Ator pode ser, mas veado não, catzo! – respondi.
Até eu estava impressionado com meu desempenho.
Impressionado e apreensivo, afinal, jamais tinha demonstradoter a menor pendência para ser gay.
Ou ator.
Mas tranqüilo, eu sabia que gay eu não era.
Mas acho que a dúvida havia se instalado, tanto em Gato, como na gata.
Há alguns anos atrás, tinha sido a estrela de um curta-metragem, cujo roteiro era meu.
Pena que era trabalho da faculdade dela, mas mesmo assim, foi um sucesso absoluto, o melhor de todos.
Não lembro o nome da personagem, acho que era Fabí, algo assim.
Tava de férias, não tinha nada pra fazer, resolveu ligar pros amigos, ver quem achava de bobeira.
Achou eu.
Já aproveitei e fiz a oferta.
- Bom dia, mon amour!
- Bom dia, gato, te acordei?
- Não, não... Já tava acordado, só com preguiça de sair da cama.
- E aí, que acontece? Tá de férias?
- Mais ou menos, tô demitido, no momento.
- Humm, mas que merda, hein?
- Dá nada, logo, logo, arranjo outra coisa, melhor.
- Se tu dizes....
- Mas e aí, fofa? Vais fazer o que hoje?
- Eu? Nada! Tô de férias, caçando o que fazer. Esta cidade, no inverno, parece um cemitério, que saco!
- Olha só! Que tal ir comigo e com Gato dar um rolê na praia do Moçambique?
- Putz! É longe que dói!
- Quié isso, gata? Tu acabaste de dizer que não tinha nada pra fazer!
- Isso lá é verdade. Humm, bem, vamos lá. Daqui a pouco passo aí pra te pegar. Mas...tu falaste gato? Virou veado? Arrumaste um namorado?
- Nem, nada disso. Passa aqui, que tu vais entender.
Fui tomar um banho, enquanto passava um café de paulista. Digo café de paulista porque os catarinenses costumam tomar um café bem fraco, parece até ser verde, colhido antes do tempo, de tão ralo que é.
No chuveiro, ri da reação da gata.
Gato estava se afogando na sua tigela de água. Já estava na terceira. Maldita ressaca!
Estava acabando o café, quando tocou o interfone.
Era a gata.
Mandei subir.
Continuava linda como sempre, magrinha, tipo mignon.
Já chegou chutando o balde.
- Olááá! Cadê teu namorado?
- Que namorado que nada! Tá fumando maconha estragada, é?
Ambos rimos, era uma velha brincadeira entre a gente.
- Vou te apresentar Gato.
Levei-a até a cozinha.
Gato lá estava, largado na janela, olhando pra baixo.
- Eis Gato!
- Gato? Mas isso é um cachorro, porra!
- Eu sei que é um cachorro, mas seu nome é Gato!
- Tira este pelanca daí, vai cair desta janela!
- Pelanca não, olha o respeito, guria!
- Tá, mas o nome dele é esse mesmo? Gato?
- Adivinha por quê?
- Nem faço idéia... Ele mia?
- Miar, não mia, mas vive debruçado nas janelas, e não cai.
- Sei... Boto fé. E então, preparado pra ir ao fim do mundo?
- Craro Creusa!
- O pelanca, ops, o cachorro vai junto?
- Vai sim, tudo bem pra você?
- Desde que não mije ou solte pêlos no meu carro, tudo bem.
- Não se preocupe, ele é civilizado.
- Aham.
E lá fomos nós, eu, Clotilde e Gato.
Em direção àquela praia, para mim ainda desconhecida.
No caminho, perguntei:
- Clô! Tu sabes por que chamam esta praia de Moçambique?
- Sei sim, é por causa duns bichinhos que só tem lá, uma espécie de berbigão, que dá na areia. São chamados Moçambique, daí o nome.
- E se come?
- Tem gente que come, eu mesma, nunca provei. Não sou muito chegada nessas coisas exóticas.
- Talvez com uma cervejinha fique bom.
- Pois é. Mas hoje, meio da semana, inverno, duvido que encontremos algo aberto. Lá não tem nada, é reserva ambiental, proibido construir qualquer coisa próxima à praia.
- Veremos, veremos.
Após uma longa jornada, atravessando a ilha de um lado ao outro, enfim chegamos ao nosso destino.
Logo após a praia do Santinho, chega-se ao Morro das Aranhas. Onde, aliás, segundo minha amiga, não tem aranha.
Curioso, isso.
Da estrada não se vê a praia, não no início. Só algumas casas, pousadas, bares e padarias, ou melhor, mercadinhos.
De repente, Clotilde entrou numa ruela. De lá, seguiu até uma estradinha estreita, de terra. Aí sim, surgiu o mar.
Vazio, enorme, lindo, de um azul profundo, ondas grandes estourando violentamente na praia.
Quando os primeiros portugueses aqui chegaram, devem ter visto exatamente uma paisagem destas.
Maravilhosa, pra dizer o mínimo.
Como descrever o indescritível?
Ela parou o carro, descemos.
Gato nunca tinha pisado numa praia, não numa praia deste tamanho, areia branquinha, sem poluição, sem gente.
Aliás, minto.
Tinha gente.
Duas gurias, bem agasalhadas, sentadas numa toalha de praia.
No mar, dois surfistas, com roupas de borracha, sentados em suas respectivas pranchas.
Fora estas pessoas, mais ninguém.
O Portuga estava certo, a praia era realmente imensa.
Fui até a beira d’água. Tirei os sapatos, as meias e molhei os pés.
Brrrrrrrrrrr! Nunca imaginei que o mar pudesse ser tão gelado. Clotilde riu da cara que fiz.
Gato se aventurou, molhou as patas, e também nem quis muito papo com aquela geladeira líquida.
Olhei de novo para os surfistas.
Não eram surfistas, deveriam ser um casal de pingüins.
Como uma criatura se atira num mar destes, com este frio, vento e numa água nesta temperatura?
Tem que gostar muito deste esporte.
Ou ser muito doido.
Ou ambos.
Prefiro surfar na internet.
Olhei para o chão, procurando os tais moçambiques.
Achei uma conchinha, rapidamente se enterrando na areia após a passagem de uma onda.
Meio triangular, rajada, como um tigre.
Então era aquilo.
Observando com atenção, percebi que havia milhares.
Incrível.
Ouvi um grito.
Era Clotilde, perguntando se íamos ficar ali o dia todo, naquele vento medonho.
Calcei os sapatos, chamei Gato.
Novamente no aconchego do carro dela, o ar quente no máximo, rumamos em direção à pequena vila de pescadores, na outra ponta da praia, vários quilômetros adiante.
Nada de um lado, só mato. Do outro, o mar interminável.
Fiquei pensando quanto tempo mais levaria para que os empreendedores e agentes imobiliários lá chegassem, com suas escavadeiras, máquinas de terraplanagem, enfim, com suas obras faraônicas e de gosto duvidoso.
Quanto tempo de vida selvagem teria ainda este paraíso.
A vila era uma coisa de filme, uma rua principal, ou seja, a rodovia, mais umas cinco ou seis ruas que a cortavam, transversalmente, e acabou.
Coisa de faroeste.
Na maioria, apenas casas simples, a maioria de madeira com alvenaria.
Uma ou outra mansão, mas nada sequer próximo do que se vê em outras praias, como no Jurerê Internacional, na Lagoa da Conceição e demais praias já dominadas e, conseqüentemente, depredadas pela ambição e especulação imobiliária.
Paramos perto de um restaurante.
Aberto.
Nem Clotilde acreditou que estivesse aberto.
Dentro, um velhinho atrás de um balcão. Na parede atrás dele, algumas prateleiras com as cachaças mais ordinárias, uísques nacionais, e uns enfeites muito bregas.
Além, lógico, de uma enorme bandeira de um time local, esticada de ponta a ponta do que sobrava da parede.
Avaí era o nome do time.
Nunca compreendi o porquê deste nome.
Coisas da ilha.
O local se encontrava na mais completa penumbra.
Chegamos no balcão e cumprimentamos o dono.
- Bom dia, senhor. Pode nos servir uma cerveja, por favor?
- Pois não, qual vocês preferem?
- Quais que têm?
- Só Colônia e Krill.
Não conhecia nenhuma das duas.
- Qual a melhor?
- Ah! O pessoal prefere a Colônia, mas a Krill é mais barata, não é ruim, não.
- Mmmm. Manda esta, vamos experimentar. Tá bem geladinha, né?
- Sim senhor, podem sentar, que já sirvo vocês.
Sentamo-nos numa mesa, bem rústica, cadeira de palhinha.
Logo em seguida o velhinho nos trouxe a cerveja.
Rótulo vermelho e branco, bem amarela, fazia bastante espuma.
Até que não era das piores, embora tivesse um gosto meio ácido, meio azedo.
Mas estava bem gelada.
Quase tão gelada quanto a água do mar.
Ou seja, perfeita para encerrar aquela aventura no fim do mundo.
Eu e Gato saímos para, como sempre, dar uma passadinha etílica no Portuga.
No caminho, encontrei uma velha amiga.
Marília Skol, o nome dela.
Sobrenome sugestivo.
Sardas, cabelo cor de fogo, nem alta nem baixa, mediana.
Eu a havia conhecido numa noite na final de um concurso literário.
Ela era uma aspirante a poeta, também estava concorrendo com um livro.
Ganhou um terceiro lugar, pois em primeiro, nas duas categorias, nacional e catarinense, o vencedor foi um cara de nome esquisito, um tal de Baldur Lucas, com dois livros.
Um deles tinha um título mais estranho que seu nome: “Rato, uma história de amor”, já o outro era sobre um hotel mal-assombrado.
Alguns dias após minha saída eu recebi um telefonema.
Era ela.
Estava com uma amiga.
Nisiê.
Estavam de bobeira pelo centro, me convidaram prá sair, tomar um café.
Que nem café foi, foi cerveja mesmo.
E conheceu Gato.
Ficaram encantadas com ele, apesar de também estranharem o nome dele.
Aí me contou parte de sua vida, entre um gole e outro.
A Marília, pois a amiga nada falava só me olhava com cara de tarada.
Ou melhor, entre uma garrafa e outra.
Voltamos para minha casa, todos, inclusive Gato, meio bêbados.
Noite estranha esta que passou.
Ficou só olhando, de cima da janela, no parapeito, seu lugar predileto.
A ruivinha, Marília, já se acomodou no único sofá da casa.
Estava bem à vontade.
Tão à vontade que tirou a blusa, peitinhos de fora, sorriso sacana na cara.
A outra não perdeu tempo, a loira Nisiê.
Tirou não só a blusa, mas a calça também.
Olharam-me com cara de safadas, começando a se esfregar uma na outra.
Resolvi entrar na brincadeira.
Abaixei as calças, tirei a camisa e me joguei no sofá.
Ambas me agarraram.
Uma no meu pau, a outra me beijando, lambendo, chupando.
E assim foi a noite inteira, enquanto eu comia o rabo de uma, a outra beijava a colega, chupava seus peitos, lambia meu saco.
Depois trocávamos.
Se fosse a Marília a primeira a ser comida, depois era a vez da Nisiê.
Insaciáveis.
Taradas.
Deliciosas.
Amanheceu, e eu ainda não tinha dormido.
E nem queria, queria era mais sexo, muito mais.
A Marília foi a primeira a apagar.
Já a Nisiê essa era mesmo insaciável. Não parou, aliás, aproveitou que a amiga adormeceu e começou a me atacar.
Fui literalmente estuprado.
E adorei isso.
Dormi abraçado com as duas.
Horas depois, acordei com a Marília me chupando.
Nisiê dormia como um anjo ao meu lado.
E pronto.
Pau duro, a gata me sugando, começou tudo de novo.
E assim foi até o meio dia.
E Gato lá, na janela, só olhando aquela estranha movimentação.
Pairava no ar um cheiro de sexo selvagem.
Cada vez mais selvagem, pois a outra gata ao acordar e se deparar com a amiga me comendo, resolveu que também queria mais.
E a coisa continuou até umas quatro da tarde.
Após todos tomarem um banho caprichado, entremeado com mais sexo, desta vez aquático, resolvemos comer alguma coisa.
Pra variar, nada na despensa.
Chamei Gato.
Elas estranharam eu chamar meu cachorro de Gato.
No caminho do Portuga, contei-lhes a origem do nome do cachorro.
O qual, aliás, ia todo pimpão, saltitando e abanando o rabo.
Foi o primeiro a se aboletar na banqueta do boteco.
E o primeiro, também, a ser servido pelo desconfiado Portuga.
Desconfiado porque jamais me havia visto com garota alguma, muito menos com duas.
Mas nos atendeu com sua costumeira simpatia.
Após algumas cervejas, resolvemos comer algo, afinal, a noite fora bem agitada.
O Portuga se ofereceu para assar dois peixes.
Duas anchovas.
Aceitamos.
Enquanto esperávamos, mais cerveja goela adentro.
Curiosamente, parecia que Gato e o Portuga nos olhavam desconfiados e divertidos.
Estranho este meu cachorro.
Após a peixada, as duas foram embora, não sem antes prometerem que voltariam.
Mas quem voltou foi a Marília.
A ruiva.
Jamais havia tido um caso, namoro ou mesmo rolo com uma ruiva.
Sempre fora uma tara minha.
Finalmente, já podia dizer que não me faltava comer mulher nenhuma.
Já havia experimentado todas as cores e sabores.
E esta ruiva foi a campeã, a melhor de todas.
Em tudo, sob todos os aspectos.
Gostou de mim e de Gato.
Queria me conhecer melhor, disse que a noite havia sido ótima, mas que preferia eu sozinho, sem amigas.
Concordei.
Afinal, fazia tempo que ninguém mostrava interesse por mim.
Exceto Gato.
Conversamos muito, durante muito tempo.
Contei-lhe toda a história dos cartões, da charada e de como Gato apareceu em minha vida.
E ela cada vez mais fascinada, não se comigo, com Gato ou com minha história maluca.
O nome dele não era este, mas era assim que ele gostava de ser chamado.
Tinha a ver com yoga e umas coisas místicas.
- Alô?
- Alous! Rattis?
- Sim, quem?
- Om.
- Om?
- Om Shanti!
- Ah! Fala aí, rapaz, há quanto tempo!
- Pois é, né?
- Quais as boas?
- O de sempre, trabalho, festas, mulheres, essas coisas.
- Pois aqui, nem trabalho, nem festa, nem mulher.
- Vou resolver teu problema, tu ainda tá morando no mesmo lugar?
- Sim, sim.
- Então espera um pouco, daqui a pouco tô passando aí!
- Falou!
Enquanto esperava o Shanti, fui ver se o vizinho havia deixado o jornal.
Estava lá, o de ontem e o de hoje, ele deveria estar viajando.
Muito bom.
Não demorou muito, ouvi o carro dele lá embaixo.
Dava para ouvir o ronco do motor de longe.
Era um Ford, bem velho, caolho, caindo aos pedaços.
Mas andava.
Não sei como, porém andava.
Desci.
- Fala Om! Beleza?
- Tudo certo.
- Mas e tu, que andas fazendo?
- Continuo trabalhando com festas, aliás, vim aqui te convidar pra ir numa comigo, vamos?
- Quer saber? Vou sim. Tô precisando mesmo espairecer.
- Então entra aí!
E já foi abrindo a porta do carro.
- Não, espera um pouco, tenho que deixar comida e água pro Gato.
- Gato? Mas tu sempre disseste que não gostava de gatos.
- Não, não, não é um gato, é um cachorro.
- Bah! Mas tu falaste gato.
- Gato é o nome dele.
- Peraí. Teu cachorro se chama Gato?
- Isso. No caminho te explico.
Após deixar Gato na cozinha, com bastante comida e água, e pegar um casaco, fui ao encontro de Shanti.
A festa era no Cacupé, não muito longe do centro.
Chegando lá, reencontrei um conhecido, um diretor de arte de uma conceituada agência de publicidade.
Já as outras pessoas, eu não conhecia ninguém..
Mas tudo bem, tinha muita cerveja e alguma coisa cozinhando numa panela imensa.
Após muita cerveja e de devorarmos o ensopado que estava cozinhando, resolvemos ir embora.
Demos carona a duas gatas.
Natália e Natércia.
Iam para o centro, também.
Aliás, para um morro, moravam perto de uma escadaria imensa.
Mas Om, apesar de morar aqui há décadas, não sabia que ali tinha uma escadaria.
Assim que as meninas se despediram, ele resolveu cortar caminho, e enveredou pela rua à frente.
Mas não era rua.
Era a maldita escadaria.
E lá fomos nós, ladeira abaixo.
Ou melhor, escada abaixo.
Quando ele conseguiu parar o carro, já tínhamos descido uns vinte degraus.
E agora?
Voltar não dava.
Ir em frente, nem pensar, até por que havia um hidrante logo abaixo, no meio da escadaria.
O jeito era ir embora e, de casa, tentar achar um guincho para rebocar o carro.
- Puta merda! Caralho! Que bosta!
- Calma Om, calma. Depois a gente resolve isso, vamos pegar um táxi...
- E tu achas que vou deixar meu possante aqui? Sozinho?
- Possante? Sozinho? É um carro, cara, não é gente!
- Mas ele nunca ficou longe de mim.
- Cara, tu tá transtornado, vamos embora.
- Não Rattis, vão roubar!
- Roubar como? Se não sai daqui, não sobe e nem desce?
O carro era bem velho, não tinha aparelho de som, nem mesmo um mísero rádio AM. E onde estava, nem o mais motivado ladrão conseguiria tirá-lo de lá. Só se tivesse um guincho ou guindaste.
Mas ladrão de carro não anda com guincho.
Depois de muitos protestos, ele concordou em ir até minha casa.
Era mais perto que a dele.
Para completar o show de horrores, na descida tropecei e caí de cabeça no chão.
Fui rolando o restante das escadas.
Já estava estropiado da surra, mas agora fiquei bem pior.
Abriu um talho na cabeça.
Era sangue pra todo lado.
Imediatamente, Shanti esqueceu do carro, achou que eu tinha que ir num hospital.
- Vamos para um hospital, Rattis! Abriste a cabeça!
- Não foi nada, desencana.
- Como não foi nada, cara? Tu tá que é só sangue!
- Não, não é nada. Só abriu um cortezinho, já estava machucado.
- Quié isso? Tu vai sangrar até a morte desse jeito.
- Que sangrar até a morte que nada! Já estou me acostumando a me arrebentar.
Tivemos que ir a pé, nenhum taxista queria nos deixar entrar em seus veículos.
Realmente, eu estava sangrando muito, mas cortes na cabeça geralmente sangram bastante, e raramente é problema.
Chegando em casa, fui averiguar os prejuízos.
Assim que parou de correr sangue, ficou só um corte ridículo.
Mas Om estava bem impressionado.
Aliás, até Gato ficou assustado.
E começamos a maratona telefônica em busca de um guincho.
Mas àquelas horas tardias da noite, nada achamos.
Arrumei o sofá pro meu amigo e fui pra minha cama, precisava descansar.
No dia seguinte, após um café bem forte, descobrimos uma coisa.
Um guincho não iria servir, teria que ser um Munck.
Ou seja, um guindaste.
Bizarro, isso.
Pior foi explicar para o sujeito do Munck onde estava o carro.
E como havia ido parar lá.
Isso foi mais bizarro ainda.
O sujeito não sabia se ria ou se chorava.
Viramos o assunto do dia naquele morro.
Natércia e Natália, sentadas no muro de sua casa, riam que se acabavam.
Apesar de ser triste, era até engraçado.
Até um carro da emissora local apareceu, mas para azar deles, o nosso carro já havia sido retirado do local.
Seria lindo, todos nossos amigos assistindo ao noticiário local.
E nós lá, com o carrinho de Shanty.
Escada acima.
Rebocado por um guindaste.
Mas verdade seja dita: o carro dele estava em melhor estado que eu.
Como todos os dias, fui trabalhar, após providenciar a comida e a água de Gato.
Nesta época, trabalhava com reposição de mercadorias em prateleiras de supermercados e lojas de departamentos.
Para uma grande empresa de cosméticos.
Ao chegar ao primeiro mercado de meu roteiro, uma surpresa.
Polícia na porta.
Todos os funcionários do lado de fora, nervosos, falando uns com os outros.
O que será que teria acontecido, logo àquela hora da manhã.
Não era nem dez da manhã.
Fui me aproximando, cheguei perto de uma moreninha, uma gordinha linda. Moreninha é modo de dizer, pois ela era bem branquinha, só os cabelos muito pretos.
E, na seção em que eu trabalhava, com perfumaria, era a única que não era baixinha.
E as demais, todas de baixa estatura.
Não sei dizer o porquê disso, mas em qualquer loja, sempre são as mais baixinhas que cuidam deste setor.
Deve ser alguma regra.
Perguntei:
- Oi, bom dia! O que acontece?
- Bom dia, Sr.Rattisbonnes. Tem um doido aí dentro.
- Um doido? Como assim, um doido?
- Um cara entrou logo que abriu a loja, já foi gritando que tinham sacaneado com ele, que ele iria se vingar.
- Sacaneado? Quem? A loja?
- Não, aliás, não sei. Mas me pareceu que ele sofreu um acidente e resolveu descontar no primeiro lugar que achou, ou seja, aqui.
- Mas o acidente foi aqui na loja?
- Não, não, nada a ver. Foi na rua mesmo.
- Que sujeito doido!
- Pois é, Sr. Rattisbonnes, pois é.
Curioso que estava, fui me aproximando, para ver se descobria mais alguma coisa.
Era uma quebra na minha rotina, e era muito bem vinda.
Perguntei ao policial mais próximo do que se tratava.
Ele me olhou desconfiado, perguntou se eu trabalhava ali.
Respondi que sim, que era promotor.
Ele relaxou um pouco, me olhou de novo, e disse que um cara havia sido atropelado. No acidente, tinha perdido uma parte do corpo, que tinha sido amputada. Ao que a polícia tinha conseguido apurar, na véspera ele havia entrado naquela loja para comprar algo, e esquecera um vidro com o membro amputado numa prateleira. A faxineira havia achado e, enojada, jogou fora o tal do vidro.
E agora o homem estava lá, possesso.
E armado.
Gritando, exigindo que lhe devolvessem a porcaria do vidro.
Perguntei, mais curioso ainda:
- Mas o que diabos continha o vidro?
- O pau dele!
- Caralho!
- É, foi isso mesmo que eu disse!
Devo ter feito uma cara bem estranha, pois o guarda não conseguiu reprimir uma risada.
Inacreditável, parecia até ficção, conto do Carlos Heitor Cony.
Acho até que ele já havia escrito algo assim, um livro, se não me engano.
Era a vida imitando a arte.
Que supimpa!
Quando eu contasse isso ao Portuga, ele iria desacreditar.
Afastei-me um pouco, e fiquei pensando no infeliz do lixeiro que encontrasse tão inusitada peça.
Parei novamente ao lado da gordinha, que estava visivelmente feliz por esta repentina interrupção no seu trabalho.
Era uma folga, para ela, e para mim.
Infelizmente, ela deveria ser uns vinte anos mais nova de que eu.
Mas era bem bonita.
Curioso como a maioria das meninas gordinhas tem o rosto lindo, apesar do formato de barril.
Deve ser alguma compensação de Deus.
Justiça poética, ou algo assim.
De repente, comoção geral.
A polícia pelo visto se enchera e resolvera invadir o prédio.
Iam tirar o doido lá de dentro, à força, armado ou não.
Ele que fosse reclamar da vida e procurar o cacete dele em outro lugar.