domingo, 11 de outubro de 2009

Gato e uma história de outro mundo


Minhas poucas viagens feitas nos últimos anos foram sempre em ônibus lotados, barulhentos e desconfortáveis. Mas desta vez o rodar suave dos pneus, o motor silencioso e o ar-condicionado gelado – coisa muito boa num verão quente e abafado – tornavam a viagem até agradável. E como havia poucos passageiros pude ocupar duas poltronas e esparramar as pernas. Gato adorou, pois também teria um lugar só pra ele, e acomodado em meu colo. Tomei dois comprimidos de diazepam e dormi profundamente assim que os campos à beira da estrada desapareceram na noite sem lua. Deixei Gato ao seu próprio critério. Sabia, lá no fundo, que ele iria se comportar.

Fomos despertados pelo safanão do motorista anunciando que havíamos chegado. Ainda meio dormindo, esfreguei as mãos nos olhos e espiei pela janela: um terminal na beira da estrada, desolado e com poucas luzes. Apanhei um cigarro do maço, acendi-o ainda no corredor e ao me aproximar da porta senti o bafo quente do verão vindo lá de fora.

Os passageiros desceram e saíram andando em diversas direções pela noite escura. Apenas eu, Gato e mais um ficamos ao lado do ônibus esperando o motorista abrir o compartimento de carga. Apanhei minha pesada sacola preta e caminhamos até o interior do terminal. Não era muito tarde, pouco faltava para as onze da noite, mas estava completamente vazio.

Vimos a porta do banheiro e entramos.

Depois de urinar copiosamente, aspirei uma última tragada do cigarro e atirei o toco no vaso encardido onde boiava uma poia solitária. Acionei a descarga e não saiu água nenhuma. Olhei-me no espelho trincado e cheio de manchas escuras: minha cara amarrotada merecia ao menos ser molhada. Mas a sujeira da pia e a ferrugem da torneira me fizeram desistir. Arrastando a sacola fomos até o único guichê aberto onde um homem cochilava. Bati no vidro.

O homem levantou a cabeça e perguntei:

– Por favor, como faço para chegar à cidade?

O homem resmungou:

– O senhor já está na cidade.

– Quero dizer, ao centro, onde tenha um hotel.

– Ao centro... Bem, vá caminhando. É fácil, basta seguir aí pela esquerda e lá embaixo, no cruzamento com a outra avenida, dobrar à direita. Chegará na catedral e daí é só virar à esquerda e estará na Praça Rubens Barbosa onde tem um hotel. Não tem erro.

– É muito longe?

– Uns cinco quilômetros.

Olhei para a pesada sacola preta. Olhei para Gato. Nunca andaria cinco quilômetros a pé e ainda mais com aquela sacola. Gato talvez fizesse isso, mas ele não iria carregar a sacola.

O homem percebeu o meu desalento e acrescentou:

– Ou pode ir de ônibus. O povo costuma ir a pé porque o circular demora, chega bem depois da meia-noite.

Também não estava disposto a esperar até depois da meia-noite.

Voltei a perguntar:

– Não tem táxi?

O homem me olhou espantado:

– Táxi?

– É, táxi, carro de aluguel.

– Às vezes tem um no ponto. Nunca ninguém procura por táxi, o povo sempre vai a pé, já falei. Ou de busão.

Agradeci e arrastei a sacola até a porta lateral saindo para um gramado ralo e mal cuidado. Havia um único carro perto do abrigo de ônibus, um antigo Lincoln preto, amassado e comido de ferrugem. O motorista, talvez o homem mais magro do planeta, dormia profundamente e roncava, o vidro do carro aberto. Bati na lataria e, em voz alta o suficiente para o acordar, perguntei:

– Vamos até o centro, amigo?

O motorista se sacudiu e acordou assustado:

– O quê?

– Quero ir para um hotel.

– O Grande Hotel da Municipalidade?

Empertigou-se e, acentuando a voz, acrescentou:

– É ótimo. O melhor da cidade. Está bom para o senhor?

– Está. Qualquer um serve.

Ele murmurou quase indignado:

– O Grande Hotel não é qualquer um. É muito grande, bonito e moderno... Tem até ar-condicionado! E aceita bichos!

Abri a porta e fiz menção de jogar a sacola no banco de trás. O motorista, rápido, estendeu o braço e a me tomou das mãos dizendo:

– Deixe que cuido disso para o senhor.

E, saindo do carro, logo estava ao meu lado abrindo a porta traseira.

– Acomode-se atrás, é mais confortável. E tem o cachorro, ele pode ir aí, junto com o senhor. Colocarei a sacola no porta-malas.

O motor pipocou ao ser dada a partida. O carro rodava aos solavancos, estremecendo a cada buraco e estalando as engrenagens toda vez que a marcha era trocada. O motorista diminuía a velocidade a cada cruzamento apenas para que a lataria não se desmanchasse de encontro às enormes lombadas, pois àquela hora não havia mais ninguém nas ruas que pudesse ser atropelado. Nenhum bar aberto e, nas casas, as luzes apagadas.

O homem se apresentou como Redondo, certamente alcunha conferida devido à sua extraordinária magreza. Entusiasmado, falava que há muito tempo não levava um hóspede ao Grande Hotel. Estava feliz por isto e tinha certeza que eu haveria de gostar muito, afinal era o cartão de visita da cidade. Eu ouvia enfastiado, atinando que nunca vira alguém tão magro, mais magro e macilento ainda que um tal Zunindo, sujeito a quem tive o desprazer de ser apresentado em uma das minhas muitas estadas em Curitiba e que, metido a médico, na verdade era um enfermeiro incompetente, rufião e empregado de bordel. A simples lembrança de tão abominável criatura me provocou súbita náusea e apaguei o cigarro que tinha acabado de acender.

Atualmente vinha conseguindo manter um padrão de vida suportável, mesmo sem emprego e contando apenas com minhas parcas economias. Resolvi parar com a bebida por um tempo, e isso já fazia um ano. Porém um ano era pouco, apenas um danado de um sofrimento. Se é que valesse a pena tal agrura, eu precisaria ficar muito mais tempo sem tomar uma única talagada. Com certeza – e infelizmente – o resto da minha vida.

Por isso estava me mudando. Apenas um simples artifício, comum entre os viciados quase sem esperanças e que nada garantia. Porém, desocupado e nada tendo a fazer sabia que, se continuasse a viver na grande e agitada capital, mais cedo ou mais tarde, com certeza, voltaria ao balcão dos botequins. Naquela cidade pequena e calma eu pretendia ocupar meu tempo lendo muito e escrevendo – principalmente escrevendo.

Minha primeira impressão não foi a melhor, talvez não fosse a cidade certa, estava me parecendo muito pobre e desolada. No entanto era bastante propícia, pois ficava na fronteira entre o oeste paulista e o norte paranaense, o que facilitaria o meu trabalho final de pesquisa.

Seria a etapa crucial de minhas buscas à procura de um sujeito incrível, o qual conheci vagamente na minha juventude e que muito me impressionou por possuir a capacidade de beber tonéis inteiros de aguardente sem se embebedar. Ao mesmo tempo em que emborcava as suas garrafas de cachaça, o danado do sujeito executava inúmeras façanhas milagrosas junto às classes mais miseráveis e ignorantes da população.

Protegido pelo sossego daquela cidade eu poderia finalmente terminar o livro que há tempos vinha escrevendo e para o qual já tinha até o título:

“NICOLAU, MÉDICO OU BEATO?”.

Já tinha pesquisado muito de sua vida, desde o nascimento em Qaraghandy, no Cazaquistão, até o seu melancólico isolamento numa cidade no norte do Paraná. Não sabia qual, mas tudo indicava dali ser próxima, talvez Maringá, e à qual poderia ir a qualquer momento para tentar conseguir uma entrevista exclusiva e definitivamente esclarecedora.

Nicolau Loureiro, o indivíduo sobre quem eu estava escrevendo, fundara e se tornara chefe de uma seita secreta, a obscura Igreja do Décimo Terceiro Apóstolo de Nicolaska, cujo templo – a garage de uma velha moradia em Curitiba – ficava bem defronte à universidade, até o dia em que foi desmantelado pela polícia.

Diziam os falatórios que Nicolau Loureiro se formara em medicina pela Faculdade Federal do Paraná, o que verifiquei e constatei ser verdadeiro. Mas era ainda um mistério quais motivos o fizeram abandonar a nobre profissão e se dedicar ao curandeirismo. Alguns afirmavam categoricamente ser obra do tinhoso, que descarregara sua maldição sobre ele, tornando-o enlouquecido; contrariamente, outros diziam ser obra do Divino Espírito Santo, que o fez um abençoado. Muitos diziam que havia largado a medicina por ser mais um açougueiro que cirurgião, tendo encaminhado uma boa dezena de pacientes da mesa de operação direto para uma cova no cemitério. Chegou até a correr o boato que não se tratava de falta de habilidade, mas obra de um criminoso, que matava os pacientes e vendia seus órgãos para uma quadrilha especializada em transplantes clandestinos.

Os adeptos, desde o início das pregações, constituíam um bando de vadios, a grande maioria formada de bêbados, veados e putas, ou místicos e parvos ao extremo, sendo poucas as pessoas bem informadas que o seguiam.

O incrível Nicolau Loureiro, cujo nome verdadeiro descobri ser Murilokhail Narsizoeyev, incorporava espíritos – do mal e do bem – e operava curas fantasiosas, sempre utilizando uma milagrosa água santificada, obtida da fonte milagrosa de Nicolaska, um lendário deus cazaquistanês. A tal água, na verdade, não passava de pura cachaça da pior qualidade, aromatizada com perfumes baratos para disfarçar o cheiro repugnante.

Logo deixei de lado meus devaneios, sacudido que fui pela fala de Redondo. Estávamos contornando uma praça cheia de árvores maltratadas, entre elas dois olmos compridos e curvos como se castigados por um vento que não existia. Num dos extremos o coreto de muros e pilaretes brancos, ornados no topo com luminárias simples, algumas apagadas.

O Lincoln, soltando estampidos pelo escapamento, parou diante de um prédio de três andares coberto por uma horrível pintura, amarela e toda descascada. Janelas com venezianas de madeira, encardidas e meio aos pedaços, um prédio visivelmente decrépito.

Redondo, quase gritando, disse:

– Chegamos, aí está o Grande Hotel da Municipalidade!

Ao perguntar quanto custara a corrida, Redondo me respondeu que não precisava pagar nada. Cortesia, já que era um afortunado hóspede.

Descemos do carro e ele fez questão de carregar a sacola.

A porta de entrada era imensa, de vidro, opaco de tão sujo, com esquadrias de ferro corroídas. Estava fechada e tudo era escuro lá dentro. Redondo apertou a campainha que soou como um alarme fanhoso. A porta gemeu quando foi aberta e um sujeito barrigudo surgiu da escuridão. Embora o uniforme fosse impecável tinha a camisa aberta, deixando ver o umbigo na barriga rotunda e peluda, e a gravata tinha um nó frouxo no colarinho desabotoado da camisa.

Cumprimentei-o e, informando que não tinha reserva disse:

– Quero um apartamento.

– Boa-noite, desculpe pela demora, senhor.

E, diante de sua cara de espanto, perguntei:

– Ou o hotel está lotado?

O sujeito, arrumando a gravata e abotoando a camisa, respondeu:

– Lotado? Não, nem um pouco, isto aqui mais parece um deserto! O hotel está inteiro vazio. Estava até tirando um cochilo, senhor...

– Meu nome é Rattisbones.

– Que bom que veio, senhor Ratisbones. Isto aqui está uma chatice, não abriga alma nenhuma com quem se possa conversar. Só a minha, já condenada por sinal. O senhor é muito bem-vindo. Sabe, é difícil alguém chegar numa sexta-feira, ainda mais em véspera de carnaval. Durante os últimos anos, carnaval ou não, ninguém tem ficado neste hotel.

Redondo se despediu com uma reverência anunciando que estaria à disposição a qualquer hora que precisasse.

A porta foi fechada com suavidade e desta vez não rangeu. Curiosamente, por dentro, as esquadrias de ferro não pareciam enferrujadas, mas perfeitas, deixando ver um rico trabalho artesanal. Assim como o vidro não parecia sujo, mas brilhando de limpo, cristalino, tendo no centro o brasão do Grande Hotel da Municipalidade artisticamente martelado.

O porteiro deu a volta por trás de uma coluna e acionou um interruptor. Luzes fortes jorraram de enormes lustres de cristal deixando ver o enorme salão. A madeira escura que revestia as colunas era encerada e o soalho de tábuas largas estava coberto com tapetes persas. Uma porta se abria para um salão com mesas de bilhar e outra para uma sala com várias mesas de carteado. Uma terceira dava acesso a um bar acolhedor com confortáveis poltronas de couro e lareira revestida de pedras. Mais uma porta se abria para um salão de café e, bem à frente, uma larga escada com degraus de mármore branco, os corrimãos de metal dourado cuidadosamente polidos.

Um relógio de pé badalou, acusando passar trinta minutos das onze da noite. O porteiro, carregando minha pesada sacola preta, dirigiu-se à escada e me pediu que o seguisse.

Perguntei:

– Não preciso preencher uma ficha?

– Não, não precisa preencher nada, senhor Gomes.

– Rattisbones, meu nome é Rattisbones.

– Ah, sim, desculpe, senhor Rattisbones. Faz muito tempo que nem temos mais fichas. Ninguém se hospeda mesmo.

Perguntei-me por que ninguém se hospedava. Provavelmente por ser muito caro, pensei, visto que tão luxuoso. Já que minha intenção era permanecer residindo ali, devia primeiro ter me informado do preço.

Vencido o primeiro lance de escada chegamos ao saguão do primeiro andar. O porteiro seguiu por um corredor recoberto por grosso e macio carpete vermelho. Era iluminado por uma fileira de arandelas discretas, dispostas entre as portas brancas e emolduradas com frisos dourados. Ao chegarmos ao final ele abriu a última porta.

Enfiou o braço para dentro do aposento e, acendendo a luz, disse:

– É aqui, senhor Gomes. A suíte 130 é muito agradável.

– Rattisbones. Meu nome é Rattisbones.

– Desculpe senhor Rattisbones.

Entrei e me vi numa saleta com sofá e duas poltronas beges de tecido fino, o sofá parecendo tão confortável que senti vontade de dormir ali mesmo. O porteiro abriu outra porta, defronte, e me vi diante de uma varanda espaçosa onde havia uma mesa de ferro batido com tampo de vidro grosso e duas cadeiras, também de ferro trabalhado, e mais uma convidativa espreguiçadeira.

O porteiro foi até a mureta e disse entusiasmado:

– Daqui o senhor poderá vislumbrar a linda vista da praça!

Não havia o que vislumbrar, era uma praça incrivelmente feia e escura.

A outra porta dava para um quarto com soalho também de tábuas, coberto por um tapete que parecia valioso. Tinha uma gigantesca cama de casal e a colcha era espessa e de cor castanha, parecendo pele de visom. Nas janelas pesadas cortinas de cotelê bege desciam do teto ao chão. O banheiro era também luxuoso, com banheira de louça e box de cristal. A televisão sobre a pequena mesa pertencia a uma geração já aposentada, um modelo dos anos sessenta, com caixa de madeira e tela muito curva.

Mas parecia nova em folha e o porteiro disse:

– A televisão é muito boa, é nova, das mais modernas. E, olha, pega muito bem o canal três. Quer ver?

Moderna? Dispensei a demonstração e fiquei tentando me lembrar de algum canal três. Que soubesse era um canal vazio, usado para o videocassete, assim como o canal quatro.

– O banheiro tem água quente na ducha e nas torneiras, mas com este calor desgraçado que anda fazendo quem vai querer água quente? Deseja que abra as janelas ou prefere que ligue o ar-condicionado?

Sem esperar por minha resposta ligou o aparelho.

Foi como se uma velha locomotiva a vapor tivesse entrado no quarto, resfolegando e trepidando. Também era um modelo antigo, mas que, como a televisão, parecia ter saído da loja naquela hora.

O porteiro continuou falando:

– Bem, se quiser alguma coisa é só me chamar. O telefone está ali, disque nove. A copa está fechada nesta hora, pois não temos recebido hóspedes ultimamente, como já falei. Mas se quiser uma bebida posso abrir o bar. Estou à sua disposição. Boa-noite, senhor Baldur.

– Rattisbones. Meu nome é Rattisbones! Boa-noite.

– Ah, sim, mil desculpas. Boa-noite, senhor Rattisbones!

E saiu porta afora.

Da varanda olhei a praça escura e vazia, apenas um sujeito dormindo num dos bancos. Gato se espreguiçou e foi espiar pela sacada. Fui ao banheiro, tirei a roupa e entrei na ducha fria. Enxuguei-me na felpuda toalha branca, desliguei o barulhento aparelho de ar-condicionado e abri as janelas. O calor era insuportável e, pelado, terminei de desarrumar a sacola e acomodar tudo no guarda-roupa. Enrolado na toalha saí novamente à sacada. Ouvi o carrilhão da igreja anunciar a meia-noite. Logo depois vi um vulto distorcido cruzar a praça, parecendo ser um homem muito velho e alquebrado se arrastando. Vinha na direção do hotel e sumiu de vista quando alcançou a calçada, encoberto pela marquise.

Apossou-me uma vontade incontida de beber, o que há muito não sentia. Mas não encontrei qualquer geladeira ou armário onde existisse bebida. O porteiro tinha falado em abrir o bar. Olhei para o telefone. Também era um telefone antigo, preto, de formas arredondadas e com disco. Esforcei-me, mas não resisti à tentação quase diabólica de tomar um gole e disquei nove.

Desisti depois de muitos toques sem ninguém atender.

Para conter a violenta e inesperada vontade de beber engoli dois comprimidos de diazepam, apaguei a luz e me atirei na cama.

Acordei com o barulho de madeira batendo.

O que estaria acontecendo, seria Gato?

Alcancei o abajur e o acendi.

Fui até a sala e vi a porta da varanda se debatendo de encontro aos batentes. E também as venezianas da janela. As cortinas esvoaçavam para dentro e para fora, estalando e parecendo que iam se romper em frangalhos. O vento corria por dentro da suíte e, lá fora, as árvores se agitavam. Raios cortavam o céu escuro e trovões ribombavam anunciando a tempestade.

Mas Gato dormia um sono profundo no sofá, nem parecia estar vivo.

A muito custo consegui fechar a porta e as venezianas que, agitadas pela fúria do vento, pareciam querer despencar janela abaixo. Depois de um formidável raio seguido de um estouro, a lâmpada do abajur se apagou. Tateando no escuro apanhei o isqueiro na mesinha de cabeceira e acendi um cigarro.

Começou a chuvarada, forte e barulhenta.

Enquanto ouvia o barulho do vento e da chuva parecendo querer demolir tudo lá fora e, quem sabe, ali dentro também, fumei no escuro o cigarro. Do calor infernal nada restava, de uma hora para outra o quarto ficou frio. Enrolei-me na colcha de pele e engoli outro comprimido de diazepam. Não me separava deles desde que largara o copo.

Sábado.

Nove horas da manhã quando acordei suando, a luz do abajur acesa. Apanhei do chão a colcha e olhei para o toco de cigarro no cinzeiro. Fui à janela e, afastando as cortinas, abri a veneziana. Deparei com um céu límpido, o sol já forte, o calor castigando o dia. Louco por um café, apanhei o telefone e disquei nove.

Atenderam ao segundo toque, voz de mulher:

– Bom-dia. Pois não, senhor Baldur, deseja alguma coisa?

– Bom-dia. E não me chamo Baldur, meu nome é Rattisbones. O porteiro deve ter anotado errado. Podem me trazer um café?

– Desculpe pelo engano, senhor. Vou já providenciar. Café completo?

– Não, somente um copo de leite gelado e café. Puro, sem açúcar.

– Num instante, senhor.

A voz era amável, delicada, talvez fosse moça bonita.

Emendei a troco de simples conversa:

– Que tempestade esta noite, você viu?

– Foi mesmo. O carnaval daqui já é um lixo, imagine com chuva.

Pouco depois bateram à porta.

Abri e dei com um sujeito simpático, já não muito moço, com uma bandeja e redoma de prata nas mãos.

Muito risonho, o homem se apresentou:

– Bom-dia, senhor Baldur, meu nome é Cid.

– Meu nome não é Baldur, Cid. Bom-dia.

– Ah é, não é Baldur? E qual é então?

– Meu nome é Rattisbones!

– Desculpe, senhor Rattisbones, alguém deve ter anotado o seu nome errado.

Cid não trouxe apenas leite e café, como havia pedido, mas uma porção de outras coisas, quase um almoço. Deixou tudo sobre a mesa da varanda, tendo antes o cuidado de estender uma toalha de linho branco.

Antes que saísse perguntei:

– Cid, viu só como choveu esta noite?

– De fato, foi uma chuvarada e tanto, senhor Baldur!

– Rattisbones, meu nome não é Baldur, já disse.

– Ah, sim, desculpe, senhor Rattisbones.

Cid pediu licença e saiu. Sentei-me à mesa. A louça era de fina porcelana, virei um dos pratos e vi que era inglesa. Os pesados talheres de prata brilhavam de tão polidos. Servi-me do café e de um croissant, no qual deitei uma fina camada do camembert francês. Provei um pouco da geléia de limas da Pérsia. O café era excelente e tomei o bule inteiro, acompanhado de vários cigarros.

Gato também se deliciou com vários embutidos e presuntos especiais.

Olhei para a praça e havia muita gente por lá. Sentado num dos bancos, de frente para o hotel, estava um senhor alto de pele escura e cabelos brancos, vestido de terno e gravata, o olhar fixo em algum ponto vago. Pessoas atravessavam sem pressa as calçadas entre os jardins. O céu muito azul, nenhuma poça d'água na rua, nenhuma folha de árvore no chão, nada indicava ter chovido tanto.

Liguei para a recepção.

– Pois não, senhor Baldur?

– Rattisbones, meu nome é Rattisbones, não é Baldur.

– Desculpe, senhor Rattisbones, mas está anotado Baldur. Sou a Cornélia e não trabalho na portaria. Estou no lugar da Hermengarda, ela precisou sair. Pois não, senhor, deseja alguma coisa?

– Você tem algum jornal de hoje, daqui da cidade?

– A cidade tem um único jornal, e só sai a cada quinze dias. Os jornais de fora ainda não chegaram, mas tenho os de ontem. Os de hoje chegam mais tarde, lá pelas onze horas.

– Tem alguma banca por perto?

– Tem sim, deseja que mande pedir algum jornal?

– Não, obrigado. Eu mesmo irei até lá mais tarde. Também quero comprar algumas revistas.

– Hoje é sábado, a banca fecha ao meio-dia e depois só abre na segunda-feira. Por causa do carnaval, sabe?

– Cornélia, viu como choveu esta noite? Engraçado, não tem nenhum sinal de chuva lá fora...

– Tenho o sono pesado, talvez tenha chovido de leve.

Não tinha sido de leve coisa nenhuma, fora uma desgraçada de uma tempestade, capaz de acordar um defunto. Cortei a barba e tomei banho. Antes de sair, como não havia controle remoto, apertei o botão sob a tela e liguei a televisão. Era uma televisão ainda de válvulas e demorou algum tempo para surgir a imagem não muito nítida, cheia de chuviscos e fantasmas, em preto e branco, um desenho animado.

Desliguei – que aparelho mais antigo! – e deixei o quarto.

Desci as escadas e reparei o mármore alvo e conservado, o grosso tapete vermelho sem nenhum desgaste. No balcão da portaria estava uma moça morena e enxuta, seria a tal Cornélia?

Era. A banca – também tabacaria, papelaria e livraria – ela disse ficar na Rua Paraná, logo ali do outro lado da praça. Fui lá e fiz uma provisão de cigarros, livros e revistas, suficientes para mais de um mês.

Ao sair da loja perguntei à moça da caixa:

– Sempre chove desse jeito por aqui?

Ela fez cara de surpresa:

– De que jeito? Faz tempo que não chove...

Como, faz tempo que não chove? A moça devia ser doida.

Ao voltar sentei-me num dos bancos da praça, de frente para o hotel, e fiquei olhando o prédio. Era imponente, mas muito mal cuidado por fora. A fachada amarela tinha a pintura descascando e as venezianas estavam quebradas. Algumas janelas nem as tinham e, em volta de algumas delas, como nas bordas do teto, as paredes estavam manchadas de preto.

Por que tamanho descaso?

Levantei-me, passei pelo senhor alto e de pele escura que por lá continuava sentado, cumprimentei-o e ele respondeu com um largo sorriso.

Aproveitei para perguntar:

– Que chuva esta noite, o senhor viu?

– Chuva, que chuva?

Insisti, instigando o homem:

– Um verdadeiro dilúvio. E como ventou. Sempre venta forte assim? Deve ventar, estou vendo os olmos vergados.

O sorriso do homem murchou e, categórico, retrucou:

– Os olmos sempre foram assim. Não choveu esta noite e também não ventou. Pelo menos não aqui nesta cidade, disto eu tenho certeza!

Ao chegar à recepção encontrei uma senhora madura no lugar da jovem Cornélia e, após cumprimentá-la, perguntei:

– A senhora sabe aonde posso encontrar um bom restaurante?

Era ruiva, rechonchuda e tinha a cara fechada.

Respondeu secamente:

– Bem perto, senhor Baldur. Só uma quadra depois da praça, o restaurante Pia Pinto, ótima comida.

– Rattisbones, meu nome é Rattisbones, dona...

– Meu nome é Hermengarda.

Mais tarde, depois de ter lido os jornais que havia comprado, deixei o aconchegante salão do bar – onde estranhei não ter sentido nenhuma vontade de beber – e saí à rua. Debaixo do sol impiedoso fui atrás do tal restaurante. Realmente, a comida era boa e farta. O próprio dono me atendeu com simpatia e, depois de perguntado, respondeu que tinha certeza absoluta de não haver chovido nem ventado à noite. Fiquei confuso. Somente eu e o pessoal do hotel percebêramos a chuva? Concluí que talvez eu estivesse abusando do diazepam. À tarde evitei o remédio, mas logo dormi, empanturrado que estava do almoço.

Quando acordei estava quase escuro e, apesar de ter comido feito um cavalo, sentia fome. E sede, sede de álcool. Lembrei da noite anterior, quando só não pedi bebida por ninguém ter atendido ao telefone. Mas que forças diabólicas estariam me tentando novamente depois de quase um ano sóbrio, assim sem mais nem menos?

Um pouco relutante, disquei nove.

A voz que atendia não era mais feminina, era o porteiro da noite:

– Boa-noite, senhor Baldur, deseja alguma coisa?

– Rattisbones, meu nome é Rattisbones!

– Ah, desculpe novamente, senhor Rattisbones. Em que posso servi-lo?

– O hotel serve algum lanche?

– Não, estamos sem serviço de copa durante a noite. Só durante o dia. Pouco movimento, sabe? Mas posso providenciar fora.

– O que pode providenciar?

– O senhor deseja jantar ou quer apenas um lanche?

– Um lanche está bom. Escute, ontem à noite eu queria pedir uma bebida, mas ninguém atendeu ao telefone.

– Curioso, senhor Baldur...

– Rattisbones!

– Ah é, senhor Rattisbones. Mas estive aqui a noite inteira e não ouvi nenhum toque do telefone. Deseja alguma bebida agora? Uma cerva bem gelada?

Como acionada por um detonador, voltou a vontade compulsiva de beber. Por que não? Bem que uma bebida cairia bem. Só uma cerveja!

Do outro o porteiro perguntou:

– Está me ouvindo, senhor? Quer uma cerva?

Fiquei em dúvida. Maldita tentação, mas tinha que resistir!

Com firmeza, respondi:

– Não, obrigado. Quero apenas um suco de laranja e um lanche.

– O Bar e Pastelaria Pontual, aqui ao lado, ainda está aberto. A Infâmia faz um ótimo sanduíche. Também tem pastel, quibe... Não quer mesmo uma cerva?

– Não, não quero! Apenas um misto quente e o suco. Ah, sim, e dois salgados de carne.

Para Gato, curiosamente, havia me esquecido dele.

Não demorou muito e a própria Infâmia, proprietária do bar, trouxe o sanduíche. Era moça, embora não muito jovem. Tinha os cabelos alourados e era meio desconjuntada, bastante alta e espigada. Explicou, irritada, que já estava fechando quando recebeu o pedido.

Percebi o quanto era mal-educada ao perguntar:

– Choveu aqui esta noite, dona?

– Dona, que dona? Dona é coisa de puta, meu nome é Infâmia e eu nem moro nesta merda de cidade para saber se choveu! Moro em Ourinhos, e vou chegar atrasada por causa deste lanche miserável!

Sentado na espreguiçadeira da varanda comi os sanduíches e bebi o suco de laranja, pensando se a megera do bar não os teria envenenado. Que diabo de mulher mais malcriada. Gato devorou os quibes, com água, muita água. Parecia estar de ressaca. Entrei e liguei a televisão. Depois de algum tempo surgiu a embaçada imagem em preto e branco, um noticiário, o Repórter Esso. Prestei atenção na previsão do tempo, que anunciava chuvas fortes em todo o sudeste do país, tal como ontem.

Ora, estava no sudeste. Então devia ter chovido mesmo, o cara da televisão tinha dito: tal como ontem! Mas o jornal que comprara na banca e lera durante a manhã não previa chuva em lugar nenhum do país, pelo contrário. O jornal também não dizia coisa nenhuma sobre desfile de escolas de samba, mas na televisão passavam trechos do desfile no Rio de Janeiro. Veio um comercial da English Lavander Atckinsons, depois apareceu o indiozinho, com duas antenas na cabeça, logomarca da antiga Televisão Tupi. Em seguida, foi anunciado mais um capítulo da novela O Direito de Nascer, do cubano Felix Caignet. Mas o que era aquilo? Mamãe Dolores e Albertinho Limonta, isso era coisa dos anos sessenta...

O porteiro da noite falara, na véspera, em canal três. Canal três era a Televisão Tupi, que nem existia mais. Só podia ser alguma fita de vídeo, algum documentário sobre a história da televisão.

Fui ao telefone e disquei nove. O porteiro desta vez atendeu na hora:

– Pois não, senhor Baldur, resolveu tomar uma cerva?

– Não é Baldur, o meu nome é Rattisbones! E não quero bebida nenhuma, não insista. Escute, vocês têm algum canal interno de vídeo?

– Não estou entendendo, canal de quê?

– Canal de vídeo! Como aquele dos motéis.

– Motéis? Canal de vídeo? Não tenho a menor idéia do que o senhor está falando. Não, não sei do que se trata e nunca ouvi falar dessas coisas.

Desliguei o telefone com raiva.

Tentei sem sucesso outros canais. O carrilhão do relógio da igreja badalou a meia-noite. Saí à varanda e não ouvi nenhum som de música de carnaval, de música alguma, nem vi qualquer movimento, a praça estava deserta. Mas por trás do coreto algo parecia se mover. E não era nenhuma sombra de galho de árvore, elas estavam imóveis, não havia vento. Era alguém, sem dúvida. Alguém talvez muito velho, movendo-se com dificuldade, quase se arrastando e vindo em direção à entrada do hotel. Esfreguei os olhos e, novamente, como na noite anterior, o vulto desapareceu.

Gato dormia no sofá, como estava quieto aquele bicho. Nunca o vira assim. Deveria ser efeito do calor.

Deixei a varanda. Foi quando ouvi leves e intermitentes batidas na porta.

O porteiro, talvez.

Vai ver o telefone não funcionava direito mesmo.

Olhei para a porta e percebi o disco de galalite preso à chave bater junto à madeira cada vez que o vento – que agora começava a soprar – era mais forte. Não era ninguém batendo. Sentei-me na poltrona da sala e acendi um cigarro. Mas, de repente, quase dei um salto. Agora sim, uma estrondosa batida na porta. E mais outra, e outra, e não paravam mais. Assustado, corri ao telefone. Uma, duas, três, muitas outras vezes tocando e ninguém atendendo. As batidas, furiosas, não paravam.

Finalmente, para meu alívio, alguém na linha:

– Pois não, senhor Baldur?

– Rattisbones, meu nome é Rattisbones!

– Ah, desculpe outra vez, senhor Rattisbones. Deseja alguma coisa?

– Tem alguém dando murros na minha porta!

– Não é possível, senhor... Rattisbones! Não é possível, só estamos nós dois aqui no hotel, nós dois e seu cachorro, quem ia dar murros na sua porta?

– Tem mais alguém e está esmurrando a minha porta!

– Deve ser o vento...

– E desde quando o vento bate na porta? É alguém dando murros!

– Está bem, fique calmo, já vou aí verificar.

Imediatamente as batidas cessaram.

Permaneci imóvel junto ao telefone. Alguns momentos depois novamente as batidas, agora suaves e cadenciadas. Arrepiei-me, mas logo percebi ser o porteiro sussurrando meu nome, mais uma vez errado.

Abri a porta.

O homem, olhando-me intrigado, disse:

– Não tem ninguém aqui, senhor Baldur.

– É Rattisbones, não é Baldur... Será que ninguém neste hotel consegue aprender o meu nome? Sim, as batidas pararam. Mas antes de você chegar tinha alguém batendo, não sou maluco.

– Senhor Baldur, mas não tem ninguém aqui...

– Baldur, é? Está bem, não precisa se desculpar.

E completei, quase berrando:

– Se tornar a ouvir murros na porta não chamarei mais você, chamarei a polícia. E, lembre-se, meu nome é Rattisbones, não é Baldur!

– Sim, senhor... Mas ninguém virá mais bater na sua porta. Boa-noite e durma bem.

O porteiro saiu e desceu a escada depressa.

Quando fechei a porta percebi, pela fresta, alguém se esgueirando em direção ao corredor dos fundos, do lado oposto ao do meu quarto. Claro que tinha mais alguém no hotel e, fosse quem fosse, estivera dando murros na minha porta.

Ou estaria tendo alucinações, síndrome de abstinência?

Depois de quase um ano sem beber?

Ou excesso de diazepam?

Sem sono, fiquei olhando a praça escura. Nenhuma alma viva na terra, nenhuma estrela no céu, um breu total. E agora ventava. De repente, o relâmpago faiscante, o trovão. Outro relâmpago, outro trovão. Raios, estouros, o vento soprando cada vez mais forte, as portas batendo, as venezianas se sacudindo e as cortinas se enfunando.

A tempestade, novamente.

Enquanto fechava portas e janelas as luzes se apagaram e um frio siberiano invadiu o apartamento. Fiquei sentado na beira da cama, enrolado na colcha, ouvindo a chuva e o vento e fumando um cigarro atrás do outro.

Se pelo menos tivesse uma bebida...

Mas tinha os comprimidos.

Engoli três de uma vez.

Domingo.

Desvencilhei-me das cobertas, estava ensopado de suor, o quarto abafado, um verdadeiro forno. Levantei-me da cama, estava vestido, a roupa amarfanhada. Abri as venezianas e vi o dia muito claro, o sol no alto, o povo atravessando os jardins da praça.

Olhei o relógio, mais de dez horas da manhã. Cortei a barba e tomei banho. Tudo funcionava direito, as luzes do banheiro acendiam, o chuveiro despejava uma ducha forte e reconfortante. Liguei a televisão, desenho animado em preto e branco. Desliguei depressa, saí à varanda e fiquei olhando tudo com muita atenção. O piso da varanda estava seco e o das ruas e calçadas também. Não havia folhas de árvores caídas nos caminhos e nos jardins da praça. Outra vez, nenhum sinal de chuva forte durante a noite. Mas chovera, e muito, disto eu tinha certeza.

E as batidas na porta?

O senhor alto de pele escura lá estava, sentado no mesmo lugar, de terno e gravata. Não havia ninguém dormindo no outro banco. Por certo, seu habitual ocupante acordara faz tempo e já tinha ido embora.

Tranquei a suíte e desci. Encontrei dona Hermengarda no balcão.

– Bom-dia, dona Hermengarda.

– Bom-dia, senhor Baldur. E choveu forte de novo outra vez, não foi?

– Choveu. Mas não é Baldur, dona Hermengarda. Meu nome é Rattisbones.

– Ah, é mesmo. Desculpe, eu sempre faço confusão de nomes.

– Não tem importância, pode me chamar pelo nome que quiser. Mas, gostaria de saber, tem mais algum hóspede neste hotel?

– Não, mais ninguém além do senhor.

– Tem certeza?

– Mas é claro que tenho. O carnaval daqui já é uma porcaria e ainda mais com tanta chuva...

– Esta noite alguém andou esmurrando a minha porta.

– Isso não é possível, quem faria tal coisa? Somente o senhor e o Dagoberto estavam no hotel.

– Então só pode ter sido ele. Afinal, quem é esse Dagoberto?

Ela me olhou, parecendo surpresa, e respondeu:

– Ora, Dagoberto é o porteiro da noite.

– Então tem mais gente neste hotel além dele. Eu vi, juro que vi, quando o Dagoberto descia as escadas, alguém caminhando depressa para o corredor dos fundos. Algum engraçadinho anda por aqui à noite, dona Hermengarda!

– Só o Dagoberto fica aqui à noite, senhor Rattisbones.

– A senhora finalmente acertou, dona Hermengarda.

– Acertei o quê?

– Acertou o meu nome, dona Hermengarda.

– É, que bom... Mas o senhor tem um nome tão complicado.

– Desde quando Rattisbones é complicado?

– Eu acho.

– Complicada é a senhora, que parece não querer entender que bateram à minha porta com bastante força e por um bom tempo.

– O senhor tem certeza que está bem? Com este calor...

– É claro que estou bem.

– Não acha melhor descansar um pouco?

– Não estou cansado, acabei de me levantar. Sabe, dona Hermengarda, acho que a senhora não é muito boa da cabeça.

Fui almoçar no mesmo restaurante.

No caminho, por precaução, passei pela feira – que era montada as quintas e domingos ao lado da igreja – e comprei, na barraca de Penélope, uma lanterninha de bolso, para o caso das luzes se apagarem outra vez. De todos a quem perguntei ouvi a mesma resposta, de que não havia chovido naquela noite.

Como assim? A própria Hermengarda puxou conversa falando da chuva.

Quando voltei do almoço parei no Bar e Pastelaria Pontual – ainda aberto embora fosse domingo – e comprei alguns pacotes de bolacha e refrigerantes. Além de vários salgados, afinal, lembrara que tinha um cachorro. Também tomei um café. Infâmia o fazia sem açúcar, como eu gostava. Mas aquele café tinha um sabor estranho e perguntei se era assim mesmo, recebendo em resposta uma saraivada de palavrões proferidos pela proprietária do boteco.

No hotel achei melhor ficar quieto e me enfiei no apartamento.

Sentia-me estranhamente agitado e inquieto, pensei em tomar – mas não tomei – uma cartela inteira de diazepam. Li metade de um dos livros que havia comprado na véspera e não saí mais nem pedi nada para o jantar.

Comi as bolachas.

Gato dormia o sono dos justos, ou estaria morto o pobre do bicho? Sacudi-o, ele gemeu, abriu um olho, e se virou para o outro lado. Só podia ser efeito do calor.

Quando a noite veio chegando o senhor alto de pele escura se levantou do banco e foi embora. Um pouco depois não havia mais ninguém na praça. Vazia e escura novamente, somente acesas as poucas lâmpadas do coreto. Um descaso, uma praça tão mal iluminada. Liguei a televisão, outra vez a novela. Desliguei e retomei a leitura do livro. As horas se passaram, o carrilhão do relógio da igreja anunciou a meia-noite. A vista já turva, parei com a leitura e fui à sacaca. Acendi um cigarro e estava debruçado na amurada quando vi, outra vez, a figura se arrastando. Era, sim, um velho, vestido em trapos, podia ver bem. Avançava com o seu andar capenga e chegou até a calçada do outro lado. Daí ergueu os braços, como se me saudasse, e soltou uma estrondosa gargalhada. Atravessou a rua e sumiu sob a marquise do hotel.

O velho teria entrado no hotel?

E na noite passada?

O porteiro o deixava entrar ou era tão relaxado que nem via?

A noite avançava e o céu cheio de estrelas foi se tornando escuro. Alguns clarões ao longe, depois relâmpagos mais próximos, trovões distantes. Deixei a varanda e me sentei na poltrona. Já ia voltar ao livro quando o disco de galalite pendurado na chave começou a tamborilar na porta. A brisa vinha lá de fora, cada vez mais forte, e a porta da varanda se fechou com um estrondo. As venezianas começaram a se agitar e logo as cortinas esvoaçavam.

Raios, estouros, chuvarada começando.

Resolvi descer até o salão de entrada.

Lá estava Dagoberto, que perguntou:

– Boa-noite, senhor Baldur. Apesar da chuva, está gostando do nosso carnaval tão animado?

– Animado? E não é Baldur, é Rattisbones!

Desisti de falar qualquer outra coisa e sentei-me numa das poltronas do salão.

Dagoberto ficou me olhando um tempo e finalmente perguntou:

– O senhor quer alguma coisa?

– Não, não quero nada.

– Quer que ligue a televisão? Hoje até que estava pegando bem.

– Não, não quero assistir a nada. Nem deve ter coisa nenhuma nesta hora.

– Hoje deve ter desfile. Quer alguma coisa do bar?

– Já disse que não quero nada, obrigado. E, principalmente, não quero beber, não me tente. Escute, este hotel está mesmo vazio, não tem mais ninguém além de nós dois?

– Isso mesmo, só eu e o senhor, mais ninguém.

– E aquele velho?

– Que velho?

– Ora, aquele velho seu cupincha, que você deixa entrar.

– Não sei de velho nenhum.

– Dagoberto, quero mudar de apartamento.

– Amanhã?

– Já, agora mesmo!

– Mas nenhum está no jeito, estão desarrumados. E o seu é o melhor de todos. Tem certeza que quer mudar?

– Vá lá, fica para amanhã. Dormirei aqui embaixo esta noite.

– Aqui embaixo?

– Acontecem muitas coisas estranhas naquele apartamento.

– Não é apartamento, é suíte. Desculpe, mas o senhor bebeu?

– Faz um ano que não bebo, um ano!

– Vai ver é isso, não é normal. O senhor me perdoe, mas acho que devia tomar uma cerva, e bem depressa!

– Não quero beber coisa nenhuma, Dagoberto. Vou para o meu quarto, mas, se acontecer de novo...

– Não é quarto, é suíte. O senhor anda sonhando, é o calor, sol na cabeça, sabe? Além disso, é coisa de louco ficar um ano sem beber, faz um mal danado para os miolos. Beba uma cervejinha, vai fazer bem.

– As luzes funcionam lá em cima?

– Claro, está tudo em ordem. Vai querer tomar uma cerva, afinal?

– Não, não quero, não insista. Boa-noite, vou subir.

Acendi a luz da saleta e verifiquei que tudo estava em ordem. Fui até a sacada. Lá estavam a mesa, as cadeiras e a espreguiçadeira. Acendi a luz do quarto, a do abajur, a do banheiro, tudo funcionava. A janela estava fechada. Abri-a e olhei a noite. Chovia barbaridade.

Estendi-me na cama e, sem nem tirar a roupa, apanhei a caixa de diazepam.

Segunda-feira.

Sabia que tal coisa não era possível. Nunca ouvira falar de alguém sofrer uma síndrome de abstinência depois de um ano, inclusive tendo alucinações. Isso não existia. Em todo caso resolvi procurar um médico. O que vinha acontecendo não era normal, podia também ser o remédio.

A manhã era de sol, como as outras. E muito calor. Depois de tomar o café no salão fui até a recepção e perguntei à dona Hermengarda se existia um psiquiatra na cidade. Existia sim. Muito solícita, tentou achá-lo pelo telefone. Depois de algum tempo alguém atendeu.

Hermengarda, com cara de decepção, falou:

– Dr. George está viajando. Só volta depois do carnaval.

– E não tem outro?

– Aqui nesta cidade, não. Só em Ourinhos. Mas, se não for urgente, acho que é melhor aguardar a volta do Dr. George. Ele é ótimo médico, está há pouco tempo na cidade, mas é muito conceituado. Sabe, ele veio da Inglaterra, é formado lá. Também é chefe do IML.

Fiquei pensando o que faria um psiquiatra – inglês ainda por cima – no IML.

Hermengarda perguntou:

– Mas o senhor está precisando de psiquiatra?

– Coisa à toa, apenas um pouco de insônia, dona Hermengarda. Queria um remédio para dormir.

– Uma receita resolve e para isso qualquer médico serve, pode pedir para o doutor Dègard lá na Santa Casa. E com um calor desses durante o dia e chuvarada durante a noite quem consegue dormir?

– Posso esperar pelo Dr. George.

– O senhor é quem sabe, se não é urgente...

As lojas abertas, afinal era segunda-feira. Andei pelas ruas até a hora do almoço. Lembrei de comprar uma ração, para Gato. Depois do restaurante voltei para o hotel. O senhor alto de pele escura continuava sentado no banco e pessoas transitavam normalmente pela praça. Nenhum sinal de algum velho andando torto.

No fim da tarde desci ao térreo. Sentei-me no salão de estar e apanhei o jornal que estava sobre uma das mesas. Era um exemplar do jornal Diário de São Paulo, de 1966, um jornal que nem existia mais.

Cornélia, exuberante e assanhada como sempre, estava na recepção.

Fui até ela e perguntei:

– Cornélia, você tem o jornal de hoje?

– Deve estar no salão.

– Lá só tem um jornal antigo, de trinta anos atrás.

– Antigo? Trinta anos, mas que diabo de jornal é esse?

Cornélia – que pernas maravilhosas! – foi até ao salão e berrou de lá:

– Mas é o de hoje, ora!

Cornélia devia ser maluca.

Saí antes que o Bar e Pastelaria Pontual fechasse. Precisava comprar cigarros e podia aproveitar para tomar um café. Encontrei Infâmia acocorada no chão, as brancas e magrelas coxas brotando da saia curta e com a bunda aparecendo, mexendo numas garrafas vazias e sujas. Pedi cigarros e o café. Infâmia o serviu com as mãos encardidas da poeira das garrafas. Continuava bom, mas com aquele paladar diferente. Desta vez não comentei nada. Preferi perguntar pelo velho capenga, se o tinha visto andando pela praça.

Infâmia respondeu com a habitual falta de educação:

– Já não chega o mata-cachorro do Joboatão me ter enchido o saco por causa do café e agora me vem o senhor com esta história de velho capenga? Eu lá tenho tempo de ficar olhando para quem passa na praça? Tenho mais o que fazer, cacete! Nunca vi velho capenga nenhum! E se achar outra vez que o café está esquisito, cuspa fora e não me aporrinhe!

Voltei a perguntar para Infâmia:

– Você conhece algum psiquiatra em Ourinhos, já que mora por lá?

– Por que haveria de conhecer algum psiquiatra? Não sou maluca nem nada. E o que o senhor quer com psiquiatra, não bate bem da cabeça?

Não era mesmo possível conversar com a mulher, era grossa demais. Voltei para o hotel. Dagoberto já estava na portaria. Eu estava curioso por saber mais sobre Infâmia e perguntei:

– Essa mulher do boteco, a Infâmia, é sempre malcriada assim?

– O senhor não viu nada, outro dia armou um barraco com o auxiliar do delegado e quase foi presa. Tudo por causa do café.

– Ela me falou de um tal Joboatão... E disse qualquer coisa sobre o café.

– É esse mesmo, o Joboatão, lá da polícia. O doutor Chamoun, o delegado, anda desconfiado...

Fez uma pausa e depois continuou:

– Não vá contar para ninguém o que vou lhe falar!

E disse baixinho:

– O delegado Chamoun anda desconfiado que ela põe cocaína no café.

– De fato o café é bom, mas é diferente. E por que faria uma coisa dessas, adicionar cocaína? Porra, será o café que me tem feito mal?

– Mal nunca fez, que eu saiba. Precisa ver o bando de gente que junta para tomar café de manhã cedo, dizem que tira o sono, revigora e dá até tesão. Bêbado, então, nem se fala. Sempre tem algum por lá, tentando curar a ressaca com o café. Só sei que ela fatura barbaridade. E dizem que ainda rouba no troco.

E, percebendo que eu estava a fim de papo, continuou:

– Cá para nós, acha ela bonita?

– Bem, ela tem os traços bonitos, apesar de magrela. Chama a atenção, mas é muito desbocada e mal-humorada.

– Por falar em mulher, o senhor já viu a Genibunda?

– Quem é a Genibunda?

– A empregada da Infâmia, muito bonita.

– Nunca vi moça nenhuma naquele boteco, se bem que tenho ido lá muito poucas vezes e nunca me demoro muito.

– Então vá e espere um pouco, pois às vezes a Genibunda sai para fazer entregas. Vale a pena conhecer a moça, é danada de safada. Mas tome cuidado, ela é chegadinha no Cid, sempre que pode vem até aqui e faz umas sacanagens com ele, uma gulosa, uma bronha rápida, coisas assim. Se souber cantar ela vai topar uma trepada.

– Mas... E o Cid?

– Ora, o Cid está pouco cagando!

– É melhor que eu não me meta nisso.

– Tenho percebido que o senhor nunca sai à noite. Se quiser, quando parar essa chuvarada, sei de um lugar sensacional.

– Que tipo de lugar? Outro boteco?

– Um puteiro, o Palácio. Tem bar também, pode ir lá só para beber, mas o forte é o mulherio. Tem uma tal de Polaquinha que só o senhor vendo, não dá para dizer como é gostosa. A dona, madame Perugina, é muito legal. Se quiser o Redondo leva.

– É, quem sabe numa noite sem chuva.

– É uma casa de muito respeito, o delegado Chamoun não sai de lá.

– Quando eu estiver a fim falo com você.

– Fale mesmo, garanto que não vai se arrepender.

Antes das oito da noite eu estava sentado à frente da televisão vendo a imagem do canal três em preto e branco, o indiozinho da Televisão Tupi aparecendo nos intervalos da programação. Em seguida começou a novela mexicana e desliguei o aparelho sem querer acreditar no que via. Só podia ser excesso de remédio! Abri um livro e comecei a ler. Logo depois do carrilhão do relógio da igreja badalar onze, deitei-me, as janelas abertas, curtindo a brisa suave que vinha de fora.

Um pouco antes disso ficara observando a praça, então me parecendo menos escura. O movimento era pouco, mas não estava deserta. Desta vez não vi nenhum velho trôpego caminhando entre as árvores.

Terça-feira.

Acordei maravilhado, tinha dormido placidamente a noite toda.

O dia foi arrastado. Um dia modorrento e começou a chover logo depois que voltei do almoço. Não saí mais do apartamento, deitei e dormi a tarde inteira. À noite pensei em ir ao bordel para conhecer a tal Polaquinha. Mas chovia muito e logo desisti, havia também o risco de encher a cara. E Gato, o que faria com ele? Um puteiro, afinal de contas, não era lugar recomendável para ele.

Só me restava dormir novamente.

Enchi foi o rabo de diazepam e caí na cama.

Acordei com o barulho da chuva forte.

Mas Gato dormia tranquilamente, como se nada acontecesse.

A lâmpada do abajur não acendia, catei a lanterna e olhei o relógio. Meia-noite e dez, começo de madrugada, o dilúvio lá fora, muito mais água, raios e trovões que nas noites anteriores. De repente, um clarão intenso seguido de um estouro mais forte e barulho de vidros partindo. Levantei-me assustado e fui até a saleta. As luzes não se acenderam. Então me pareceu ouvir uma burundanga danada. Hóspedes chegando, só podia ser. O carnaval tinha acabado e amanhã voltaria tudo à normalidade. Aliás, um carnaval que eu nem percebi.

Peguei o telefone.

Sem linha.

Lanterna na mão, abri a porta e dei um passo fora. Havia fumaça no corredor e uma luz avermelhada vinha das escadas. Vestido só de cueca, fui caminhando devagar. Ao me aproximar da escada o calor se fez sentir e, pelo vazio entre os lances, vi chamas no saguão do térreo. A fumaça se adensava, subi para o andar superior e cheguei até a escada de serviço. O vento forte vindo de uma janela estilhaçada me empurrou de volta. Agarrei-me ao corrimão de madeira, joguei o corpo para frente e rolei como uma bola pela escada abaixo até o patamar. Com dificuldade me levantei e senti uma queimação horrível no joelho esquerdo. Capengando, apoiado apenas numa das pernas, agarrado ao corrimão, arrastei-me pelos degraus que faltavam e cheguei à copa, inteiramente às escuras, mas o azul dos relâmpagos e o vermelho das labaredas me permitiam enxergar. E vi, no salão de café, Cid, Cornélia e a arrumadeira Arnécia abraçados, os corpos ardendo e os rostos se derretendo.

Arrastei-me para saguão de entrada gritando:

– Dagoberto, Dagoberto!

O porteiro saiu do salão do bar com o corpo coberto de fuligem, as roupas rasgadas e pegando fogo.

Na porta de entrada uma multidão se comprimia.

Entrei na cozinha.

A porta dos fundos estaria aberta?

Estava trancada!

Ouvi os gritos de dona Hermengarda as minhas costas, tão sinistra quanto os demais, envolta em frangalhos de roupa, com o rosto enegrecido. Ela tinha a chave, mas permanecia impassível, parecendo não poder se mover de tanto medo, só fazendo chorar e gritar. Voltei ao saguão, alcancei a escada enfumaçada e, de rastros, quase sufocando, consegui chegar ao meu quarto. Ouvi um barulho, virei-me e vi a mulher surgir na porta escancarada e entrar na saleta. Em chamas, atravessou o aposento gritando feito uma louca e correu para a sacada. Em seguida atirou-se no vazio e estatelou na calçada.

Pulei atrás, mas com cuidado, caindo sobre a marquise. Com a perna latejando, o vento e a água da chuva me fustigando, de joelhos e colado às paredes arrastei-me até a beirada da marquise. Pendurado pelas mãos tateei com os pés e senti o apoio do muro. Soltei-me. Ao tocar o solo dobrei os joelhos, inclinei o corpo para trás e terminei a queda sentado na calçada.

Então as coisas se transformaram.

Tudo estava seco, não chovia nem ventava mais. Pessoas passavam e me olhavam, curiosas, eu ali sentado na calçada como um mendigo bêbado. A praça estava iluminada e cheia de gente na noite quente e clara. Confuso, levantei-me vagarosamente e não vi nenhuma mulher estatelada na calçada.

Mesmo sentindo a lancinante dor na perna consegui atravessar a rua. Sentei no banco ocupado durante o dia pelo senhor alto de pele escura e fiquei olhando as paredes amarelas do hotel. Algumas venezianas fechadas, outras abertas como as do meu apartamento, todas em mísero estado, tortas, parecendo que iriam cair de uma hora para outra. A grande porta fechada, as esquadrias de ferro enferrujadas, o salão da recepção às escuras.

Não havia fogo em lugar algum.

Resolvi dormir no banco da praça, jurando que nunca mais entraria naquele hotel mais desgraçado.

Aos poucos relaxei e dormi.

Quarta-feira (ou sábado).

Acordei com a voz que parecia vir de muito longe, além de uma sensação úmida no rosto:

– Amigo, você está bem?

O corpo inteiro me doía, principalmente o joelho e a cabeça. Lentamente abri os olhos e tudo me pareceu embaçado. Logo as coisas a minha volta tomaram forma e eu percebi que havia alguém ao meu lado. Era o sujeito que dormia no banco da praça. E Gato, que me lambia, com cara de preocupado.

Balbuciei uma resposta:

– Sim, estou bem, pelo menos estou vivo.

O sujeito sorriu e o bafo de cachaça invadiu o ar quando falou:

– Tomou todas, não foi? Eu também gosto de tomar umas. Meu nome é Epaminondas, mas pode me chamar de Grego.

– Não bebo nada faz um ano.

– Acredito muito... Tem aí um dinheiro para uma pinga?

Tirei do bolso da calça uma nota de cinco reais. Foi quando notei estar com a mesma roupa que vestia na sexta-feira à noite. Mas como, se à noite vestia só cueca? E, ao meu lado, a minha sacola preta!

Grego estava radiante:

– Legal, cara, cincão! Vamos juntos tomar uma, é bom para rebater! Vamos lá, força, eu ajudo! Mas por que dormiu aí na calçada? Devia fazer como eu, sempre que encho a cara durmo no banco da praça.

– Acho que quebrei a perna.

– Será que quebrou mesmo? E esse machucado na cabeça? Você deve ter dado com os cornos em algum poste. Espere aí, se tem mais dinheiro eu pego um táxi e levo você para o pronto-socorro da Santa Casa.

– Tenho, pegue logo o táxi.

– Vou tomar uma pinga ali no bar da Infâmia e já volto.

Logo chegou Grego junto com o senhor alto de pele escura. Os dois me carregaram para o carro e acompanharam até o hospital. Sentado ao lado do motorista, Grego estava eufórico e não parava de conversar fiado, talvez devido às muitas cachaças.

Entre uma fala e outra, perguntou:

– Afinal que diabo aconteceu com você?

– Não sei, estava hospedado aí no hotel quando...

O senhor alto de pele escura me interrompeu:

– Hospedado no Municipalidade? Isto é uma coisa simplesmente impossível.

E, com o olhar sério e muita impostação na voz, continuou:

O Grande Hotel da Municipalidade teve, sim, os seus dias de glória. Era menino quando foi inaugurado e me lembro que, junto com outras crianças, gostava de ficar na praça, espiando o movimento dos hóspedes chegando e saindo. Ao escurecer íamos embora, pois tínhamos medo de um velho maluco que aparecia no começo da noite. Seu nome era Macalé e costumava entrar ardilosamente no hotel e ficar importunando os hóspedes. Acabou internado num hospício e faz muito já morreu. Lembro-me também da Conferência de Little Alligator, em 1947, com a presença dos doutores Adhemar de Barros e Moysés Lupion. Foi ainda nos tempos do Dagoberto. Tanto ele como o Cid e algumas empregadas do hotel, a dona Hermengarda e a Arnécia, além da linda e jovem Cornélia, morreram no incêndio e agora seus ossos estão bem enterrados em alguma cova no cemitério. O prédio ficou completamente destruído, só sobrou a fachada, atrás dela só existem escombros. Está para ser demolido desde aqueles tempos, mas agora é da prefeitura e, o senhor sabe, entra e sai prefeito e ninguém faz coisa nenhuma.

Eu estava completamente aturdido.

– Então houve um incêndio esta noite? – perguntei apavorado.

– É claro que houve um incêndio, mas não esta noite. Foi no carnaval de 1966. Fez muito calor naquele começo de ano e caiu muita chuva também. No último dia de carnaval, terça-feira, começou depois do almoço e despencou sem parar a tarde inteira. Os que faziam o turno do dia não quiseram sair com aquela tempestade e ficaram lá, junto com o Dagoberto, que esperava desde a manhã. Quando escureceu de vez a chuva ficou mais violenta, com raio e tudo. Um deve ter estourado no hotel durante a madrugada e começou o incêndio. Foi tudo muito rápido, o fogo se alastrou depressa. Tanto os empregados e um monte de hóspedes não conseguiram escapar. Teve uma mulher que se atirou pela sacada, aquela sacada que fica bem no canto, e se estatelou na calçada. Foi horrível. Portanto o senhor não pode ter falado com nenhum deles nem ter se hospedado num hotel que nem existe mais.

– Mas eu estive hospedado lá, juro!

Cutucando o motorista do táxi, eu continuei:

– O senhor, sem dúvida, deve conhecer o Redondo, o do Lincoln. Foi quem me apanhou na rodoviária e me levou ao hotel, pergunte a ele.

O motorista riu:

– O Redondo? Se for quem estou pensando, o que dirigia um Lincoln preto... Isto também é impossível, meu chapa. O Redondo durante muito tempo foi motorista do velho Lincoln do hotel, é verdade. Depois do incêndio acabou ficando com ele, mas há mais de dez anos, num desastre na estrada, o Redondo morreu e o carro virou sucata.

– Vocês todos estão me gozando! Se isso fosse verdade, como eu saberia do Redondo? Como, me digam? E tem mais, a Infâmia, aquela moça malcriada do boteco ao lado do hotel, conhecem? Pois fiquem sabendo que ela esteve lá, foi me levar um lanche.

Grego soltou uma gargalhada e falou:

– Depois de armar um barraco com o delegado Chamoun a Infâmia foi parar na cadeia. Quando saiu foi morar nuns matos bem longe daqui, perto de uma cidade chamada Monteiro Lobato. Deve ter morrido a infeliz, já era para ter morrido no incêndio... Sabe, o boteco pegou fogo junto com o hotel.

Contestei com raiva:

– Seu mentiroso! Faz pouco, antes de entrarmos neste carro, você foi lá tomar uma pinga. Até falou o nome dela.

– Modo de falar, meu. O boteco foi reformado, passou a ser da Lucy Anne, uma gostosa que toca sanfona e gaita de boca e está sempre mostrando as coxas. Mas todo mundo ainda chama de bar da Infâmia. Costume, sabe?

O senhor alto de pele escura voltou a falar:

– Olhe aqui, o senhor não pode ter inventado tudo, é verdade. Não sou médico nem nada, mas leio muito e entendo algumas coisas. Pelo que percebo o senhor já passa dos cinqüenta e, portanto, já andava por este mundo na época do incêndio. Provavelmente leu a notícia em algum jornal, esta cidade era importante, foi tudo muito divulgado com detalhes, o nome dos mortos e até mesmo o boteco da Infâmia. Ou o senhor pode até ter estado aqui na ocasião, assistido aos acontecimentos e ter ficado traumatizado. Depois da pancada na cabeça os fatos devem ter saído do fundo do seu inconsciente e o feito passar por um processo qualquer de alucinação. Quando melhorar procure o doutor George que é psiquiatra.

Estávamos chegando ao hospital e, antes da conversa terminar, perguntei ao senhor alto de pele escura se havia alguém chamado Baldur entre os hóspedes que morreram no incêndio.

O homem franziu o cenho como se forçando a memória e disse:

– Baldur? Sim, lembro-me de um Baldur. Morava no hotel, era escritor e andava atrás de um certo beato, um tal de Nicolau Loureiro.

– Cacete! Também?

O homem, sem dar conta do meu espanto, continuou:

– Mas nunca chegou a terminar um único livro, bebia demais. Foi um dos que morreram naquela noite. Mas não deve ter sentido nada, provavelmente estava bêbado naquela hora da madrugada.

Grego que até então se mantivera calado interrompeu:

– Morreu coisa nenhuma. Um ano antes do incêndio ele se mandou, atrás do tal Nicolau Loureiro. A Perugina, que andava de transa com ele também se safou, pois meses antes do carnaval inaugurou o Palácio e também caiu fora.

– Como você sabe disso? – perguntou o homem de pele escura.

– Ora, eu sei das coisas... Dormindo lá no banco da praça fico sabendo de tudo o que acontece e já aconteceu.

Na Santa Casa, tanto o senhor alto de pele escura, assim como Grego e enfermeiros, tinham como certo que a pancada na cabeça me afetara. E ficaram mais certos disso quando insisti ser quarta-feira de cinzas. Era sábado de manhã, primeiro dia de carnaval, disto todos tinham absoluta certeza.

Bem mais tarde, quase noite, estava deitado num leito com uma enfermeira ao meu lado. O joelho e perna engessados e um curativo na testa. Apenas me lembrava de ter chegado ao hospital e ser atendido pelo doutor Dègard Bardaux, um médico grandalhão e simpático, que me disse ter torcido o joelho.

– Não fraturou? – eu perguntara.

– Se fosse alguma fratura o senhor não teria dado um passo, dissera o doutor Dègard, soltando uma gargalhada.

O risonho doutor, talvez condoído com o meu estado de confusão mental, tentou me tranqüilizar contando um monte de histórias, falando das suas tentativas de clonagem de vacas em sua fazenda, do hospital que dirigira em Guaíra e que acabou sendo fechado pelas autoridades sanitárias e policiais tanto eram as sacanagens sexuais promovidas pelas enfermeiras e um monte de outras coisas como os seus atos desregrados durante a juventude na Islândia.

Falou e gargalhou tanto que acabei dormindo.

Acordei com fome e enquanto esperava pelo jantar, fiquei me lembrando daquela intrigante conversa no táxi. Hoje era mesmo sábado, como todos afirmavam, e eu tinha chegado ontem. Provavelmente chapado pelo diazepam, o Lincoln só existira na minha imaginação e por certo saí do terminal caminhando a pé e levei um tombo feio pelo caminho. Já na praça, exausto e atordoado, desabei na calçada defronte ao hotel e machuquei o joelho. E bati com os cornos no chão. E tudo mais que pensei ter vivido não passara das conseqüências da pancada, do remédio e do cansaço.

Mas como sonhar ou ter alucinação com gente que realmente existiu, mas que nunca vi? O senhor alto de pele escura tinha aventado a hipótese de eu estar na cidade na ocasião do incêndio, mas nunca estivera naquela cidade, disto eu tinha certeza. Talvez pudesse mesmo ter lido alguma coisa nos jornais ou assistido na televisão ou, sei lá... Achei melhor esquecer tudo antes de ficar maluco.

Depois de me aplicar uma injeção a enfermeira trouxe uma sopa de macarrão de letrinhas, com feijão e pedaços de frango. Quando terminei ela me estendeu um comprimido e disse:

– Este comprimido aliviará a dor e o ajudará a dormir, senhor Rattisbones. Mais alguns dias estará bom e poderá caminhar novamente. Boa-noite, qualquer coisa que precisar é só apertar a campainha ao lado da cama e logo será atendido pela enfermagem.

As janelas do quarto estavam abertas e as lâminas da persiana estrepitavam, retorcendo-se ao sopro do vento forte. Os clarões dos relâmpagos iluminavam o quarto e os trovões faziam um barulho assustador. A água da chuva chegava até a cama já meio molhada.

Apertei a campainha e não demorou muito entrou no quarto um enfermeiro gordo, com cara de japonês, que disse se chamar Minoru.

Quinta-feira (ou domingo).

A atendente me trouxe o café da manhã. Leite, chá e umas bolachas. O café fraco, bem do jeito que eu não gostava, mas pelo menos não era adoçado. E era bem melhor estar ali que naquele hotel.

Gentilmente ela me cumprimentou:

– Bom-dia, dormiu bem?

– Muito bem, obrigado. Se não fosse a chuvarada teria sido um sono só. Ainda bem que aquele enfermeiro gordo e japonês, o Minoru, veio logo.

– Chuvarada? Mas não caiu nenhuma gota d'água esta noite. E quem estava de plantão era o Zunindo, que é magro p’ra danar e danado de feio. E é descendente de italiano com alemão. Não temos por aqui nenhum enfermeiro chamado Minoru e muito menos japonês, senhor Baldur!

Zunindo, o enfermeiro metido a médico, lá de Curitiba? – pensei.

E Baldur de novo?

Olhei para a perna engessada, tentei levantá-la e senti que pesava. Seria difícil, muito difícil, eu sabia. Mas tinha que tentar. Assim que a enfermeira saiu, lentamente arrastei-me na cama, coloquei primeiro a perna boa do lado de fora, depois a machucada. Ficaram as duas no ar. Desci devagar a perna boa e a apoiei no chão. Depois a outra. Doeu barbaridade, já esperava. Apoiando-me no colchão cheguei até o pé da cama. Na parede, a menos de meio metro, as vassouras e o rodo que a mulher da limpeza tinha deixado ali, enquanto fora atrás de um balde. Estiquei o braço, curvei o corpo e alcancei o rodo. Trouxe-o para junto de mim e encaixei no sovaco, feito muleta. Hesitante, ensaiei um primeiro passo, depois mais outro. Arrastando a perna engessada e com a ajuda do rodo cheguei à porta do quarto.

No corredor poucas pessoas esperando ser atendidas, nenhum médico ou enfermeiro. Continuei me arrastando junto à parede e cheguei ao final do corredor onde havia uma porta aberta e depois um pátio. Não havia ninguém e caminhei até o portão fechado. Esperei ao lado, parcialmente escondido atrás de uma coluna. Não demorou muito surgiu uma ambulância e o portão se abriu. Enquanto o carro atravessava o portão esgueirei-me ao seu lado e saí.

Encostado no muro, já do lado de fora, olhei para o boteco em frente. Para chegar até ele só precisava atravessar a rua. Quase não havia movimento e capengando, mas decidido, parti para a outra calçada e entrei no bar. Sentei a uma das mesas de metal pintada com propaganda de cerveja. Olhei as prateleiras cheias de garrafas e soltei uma risada sinistra ao me lembrar que durante um ano não tinha bebido nada. Fiz um sinal para o espantado rapaz do balcão, que logo me atendeu:

– Pois não, senhor?

– Você tem uísque?

– Sim, temos. Red Rooster, senhor.

– Nunca ouvi falar desse uísque. Presta?

– É muito bom, senhor, fabricado e engarrafado no Ceará.

– No Ceará?

– É, no Ceará, sim senhor...

– Meu nome é Rattisbones. Ouviu bem? Chicones Rattisbones!

– Sim, senhor Rattisbones.

– E nunca me chame de Baldur, ouviu?

– Não senhor. Por que eu haveria de chamá-lo Baldur?

– Tudo é possível. Volta e meia me chamam por esse maldito nome. Parece que nesta cidade todo mundo é louco!

– O senhor está passando bem?

– É claro que sim. Só me dói um pouco a perna.

– O Red Rooster faz passar na hora. É um santo remédio!

– Então me traga logo um.

– Uma dose?

– Uma dose coisa nenhuma. Traga um litro cheio. E fechado!

– Com gelo?

– É, um balde cheio de gelo.

O rapaz saiu apressado e logo voltou com o pedido.

– Tenho certeza de que irá gostar muito. É um ótimo uísque.

– Não tenha dúvida. Abra o litro e encha o copo.

– É p’ra já, senhor Rattisbones.

– Isso mesmo, meu nome é Rattisbones. Ponha aí dentro da sua cabeça e nunca me chame de Baldur. E esta aqui ao lado é Gato, meu cachorro. Traga uma cerveja pra ele, bem gelada, também.

– Sim, senhor Rattisbones! Bebam tudo e não tenham medo. Se caírem de bêbados a Santa Casa é logo aqui na frente. E eles atenderão até seu gato, perdão, seu cachorro.

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